domingo, 31 de julho de 2011

A função social do empresário

por Alceu Garcia (publicado originalmente em abril de 2002)

Resolvi me apropriar, para ilustrar o tema deste artigo, de dois episódios da experiência pessoal do ilustre escritor e jornalista Janer Cristaldo narrados em algumas de suas saborosas crônicas publicadas no site http://www.baguetediario.com.br

No primeiro episódio, Cristaldo relata a alegria dos habitantes do povoado gaúcho em que nasceu e vivia quando dois mascates de origem turca apareciam por aquelas paragens, montados em bicicletas atulhadas de traquitanas inexistentes na localidade.

No outro "causo", o escritor conta suas infrutíferas peripécias para conseguir beber cerveja em um movimentado balneário na Romênia comunista. Praia cheia, sol à pino, o sedento Cristaldo dirige-se a um quiosque próximo em busca do precioso líquido para molhar a garganta. O barraqueiro público – pois tudo era estatal na Romênia -, porém, frustra o turista brasileiro ao informar que não dispunha de cerveja. Refrigerante? Não tinha. Água mineral? Também não. Não havia nada para vender e pronto. E o que o sujeito fazia ali então, indagou Cristaldo? O zeloso funcionário público – pois todos eram funcionários públicos na Romênia - respondeu, indignado, que estava cumprindo regularmente seu horário de trabalho. Não era problema dele se não havia mercadorias disponíveis para os banhistas.

A badalada praia romena, em que não havia nada para comprar, e o obscuro rincão gaúcho, onde havia, simbolizam duas ordens sociais radicalmente diferentes: na primeira, a função empresarial é proscrita; na segunda ela é permitida. Em suma, uma é socialista e a outra é capitalista. O socialismo presume que a atividade empresarial, que se funda na propriedade privada e nas trocas voluntárias, é a priori nefasta e espoliadora. O empresário (ou capitalista burguês, na terminologia de Marx) é um parasita cuja erradicação é um imperativo de justiça social. A supressão da propriedade privada e do motivo do lucro são condições sine qua non para que o egoísmo execrável seja banido da face da Terra e uma nova era de solidariedade e humanismo seja inaugurada. É claro que nada disso aconteceu onde essas idéias "brilhantes" foram levadas às suas últimas consequências, muito pelo contrário. E não havia nada para comprar nas barracas públicas das praias nem em lugar nenhum. Porquê?

A resposta é simples: onde a função empresarial é proibida, a escassez artificial de tudo está garantida. Mas que raio de função é essa afinal? Malgrado sua importância fundamental pareça instintivamente evidente aos leigos, é lastimável constatar que o que é ensinado sob o rótulo de Economia nas universidades, com raras exceções, raramente ou nunca aborda esse tema. Nas faculdades os alunos trabalham basicamente com dois paradigmas: a microeconomia walrasiana, na qual a figura do empresário é reduzida a uma abstração numérica e metida em equações matemáticas simultâneas tão garbosas quanto cientificamente estéreis; e a macroeconomia keynesiana, onde a função empresarial simplesmente não existe.

Quem procura embasamento teórico sobre esse assunto vital tem que estudar os obscuros economistas da Escola Austríaca, como L. von Mises, F. Hayek (esse ao menos ganhou o Nobel), M. Rothbard e Israel Kirzner, cujas teorias não são ventiladas nos centros acadêmicos. Mas não é difícil entender o conceito e correlacioná-lo com a realidade circundante. Como vivemos um um mundo imperfeito, em que o futuro é incerto e as nformações de que cada um dispõe sobre o que se passa ao redor são sempre incompletas e fragmentadas, a verdade é que somos todos de certa forma empresários. Isso mesmo, leitor! Se você é socialista, sinto muito; só lhe resta cometer suicídio pelo bem do "proletariado".

Cada indivíduo traça seus planos à luz de objetivos de qualquer natureza que estipula para si, correndo o risco inafastável de fracasso. Atingir os objetivos, sejam quais forem, significa que o "empresário" teve "lucro".

Assim é a vida.

No plano mais restrito da economia, empresário é basicamente aquele que compra barato para vender mais caro, fenômeno denominado no jargão econômico de arbitragem. Isso vale tanto para o comerciante que compra a mercadoria pronta do produtor para revendê-la ao consumidor, quanto para o industrial que adquire os serviços dos fatores de produção (trabalho, capital e recursos naturais) para transformá-los em bens de consumo. Mas isso não seria exploração? Não. O que acontece é que os consumidores raramente sabem onde estão e quanto custam os produtos pelos quais possam vir a se interessar. Em muitos casos, os consumidores ignoram até a própria existência de muitos bens e serviços, daí a função social da propaganda comercial, que é a de prover informação sobre a existência, preço, qualidade e locais onde se pode encontrar isso ou aquilo. Por outro lado, mesmo quando o consumidor sabe o que quer e pode pagar o preço, nem sempre o produto está disponível. É preciso fazer com que ele chegue ao consumidor.

As oportunidades de obter lucro satisfazendo os desejos dos consumidores estão sempre por aí, no ar, por assim dizer. Descobrir e aproveitar essas oportunidades é o que chamamos de função empresarial. Algumas pessoas possuem mais do que outras o sentido de vigilância e perspicácia para divisar essas ocasiões e a energia para aproveitá-las, ou seja, o talento empresarial, naturalmente correndo o risco do erro de avaliação e do prejuízo monetário. São esses indivíduos os empresários, do camelô da praça até o Roberto Marinho.

No episódio da infância de Janer Cristaldo, os tais comerciantes turcos, evidentemente empresários natos, carregavam suas bicicletas de mercadorias adquiridas na cidade grande e corriam para os vilarejos para revendê-las, onde encontravam consumidores prontos para comprar seus produtos sem o custo de se deslocar até outros lugares. Alguém explorava alguém? Não, pois as transações eram voluntárias e as partes se davam mutuamente por satisfeitas. Todos obtinham lucro pois, voltando ao jargão, maximizavam suas respectivas utilidades.

E o que ocorre quando a função empresarial é proibida tout court sob pena de prisão, como nos regimes coletivistas, ou gravemente turbada e obstruída, como em economias mercantilistas tipo a brasileira? Ocorre o que Cristaldo testemunhou na Romênia e o que presenciamos diariamente em nosso país: escassez desnecessária e pobreza. Naquele país comunista, as oportunidades empresariais não podiam ser exploradas. Embora houvesse milhares de consumidores ávidos por uma "loura gelada" na praia, não havia quem se dispusesse a fornecê-las por iniciativa própria. E ai de quem o fizesse! Que contraste com as praias brasileiras, onde a livre iniciativa e a função empresarial são permitidas (até certo ponto)! É uma profusão de vendedores de todo tipo de coisas. E a tradicional cervejinha nunca falta.

Mas em países como o Brasil a função empresarial é estorvada de mil formas pelo Estado, sobretudo entre os mais pobres, o que resulta em pobreza desnecessária (e, logo, imoral). O economista peruano Hernando de Soto vem pesquisando há anos os processos pelos quais os governos embaraçam os empresários, e os efeitos desastrosos dessas políticas. O resultado desse brilhante trabalho está disponível para o público, leigo inclusive, em dois livros. No primeiro, "El Otro Sendero", de Soto investiga os fatos em seu próprio país, enquanto que no segundo livro, "Los Misterios del Capital" (ambos traduzidos e publicados por aqui) ele amplia sua perspectiva para o mundo todo. No Peru, como no Brasil e alhures, as leis e regulamentos ininteligíveis e contraditórios de um lado e os tributos e encargos "sociais" extorsivos de outro geram obstáculos artificiais quase intransponíveis à atividade empresarial, principalmente entre os empresários humildes, que não têm como pagar os custos de operar legalmente, e ocasionalmente nem as propinas para funcionar ilegalmente. A consequência é a formação de vastos "setores informais" nas economias desses países, nos quais se trabalha e produz à margem da ordem jurídica. Sem esses mercados negros aliás, dezenas de milhões de pessoas simplesmente não teriam como trabalhar e seriam condenados à fome. Os empresários e proprietários pobres ficam impedidos de negociar no mercado formal, abrindo contas bancárias e regularizando suas empresas no registro comercial, por exemplo, pois não possuem títulos de propriedade nem licenças e que tais. Assim, empreendimentos e empresários promissores são mantidos desnecessariamente na clandestinidade e impedidos de produzir, crescer e se desenvolver. Produzindo-se menos, consome-se menos também. E as consequências de ordem moral são terríveis, pois o sentimento difuso de opressão e injustiça resultante só pode produzir uma ordem social viciada e instável. Como a nossa.

Para variar, é o Estado e os grupos – sobretudo os intelectuais - que se servem dele para explorar os incautos, o culpado por essa situação. O governo é uma espécie de Midas ao avesso, pois onde quer que se meta a atuar na economia, proibindo no todo ou em parte a função empresarial, transforma abundância potencial e maximização da satisfação individual em escassez e insatisfação permanentes. Quem se preocupa sinceramente com a dolorosa pobreza de grande parte dos brasileiros deve lutar para que a função empresarial seja desonerada e libertada das cadeias estatais. Não há outra saída.

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Conforme apresentação de Olavo de Carvalho "Alceu Garcia não existe. É o pseudônimo de um cidadão que, cercado de esquerdistas por todos os lados, e já conhecendo o tratamento que eles dão a quem ouse contrariá-los no local de trabalho, tem bons motivos para desejar permanecer incógnito. Camuflado ou não, é um excelente escritor (...)."

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Digressões sobre a definição de dinheiro

por F. A. Hayek (capítulo 10 do livro Desestatização do Dinheiro)

Costuma-se definir dinheiro como o meio de troca geralmente aceito, mas não há razão para que, dentro de uma determinada comunidade, deva haver apenas um tipo de dinheiro que seja geralmente (ou pelo menos amplamente) aceito.  Na cidade austríaca fronteiriça com a Alemanha em que vivo há alguns anos, os comerciantes, bem como a maior parte dos outros empresários, aceitam, com a mesma facilidade, marcos alemães ou xelins austríacos, e é somente a lei que impede que os bancos alemães em Salzburgo efetuem suas transações em marcos alemães, da mesma maneira que o fazem a dez milhas de distância, no lado alemão da fronteira.  O mesmo se pode dizer de centenas de outros centros turísticos na Áustria, frequentados principalmente por alemães.  Na maioria deles, os dólares serão também aceitos quase que com a mesma facilidade que os marcos alemães.  Creio que a situação não é muito diversa em ambos os lados de longos trechos de fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá ou México, e provavelmente ao longo de muitas outras fronteiras.

No entanto, embora em tais regiões todos possam estar dispostos a aceitar várias moedas à taxa de câmbio do dia, indivíduos podem usar diferentes tipos de dinheiro para guardar (como reservas líquidas), visando a contratos de pagamentos futuros, ou para fins contábeis, e a comunidade pode responder da mesma maneira às alterações na quantidade das diferentes moedas.

Quando falamos em diferentes tipos de dinheiro, temos em mente unidades de diferentes denominações, cujos valores relativos podem oscilar uns em relação aos outros.  A oscilação desses valores deve ser enfatizada por não ser a única maneira de distinguir os meios de troca uns dos outros.  Também podem, esses valores, ser bastante diferenciados, mesmo quando expressos em termos da mesma unidade, pelo seu grau de aceitação (ou liquidez, isto é, na própria qualidade que os faz serem dinheiro), ou em termos dos grupos de pessoas que prontamente os aceitam.  Isso significa que diferentes tipos de dinheiro podem distinguir-se uns dos outros em mais de uma dimensão.

Não há distinção clara entre dinheiro e não dinheiro

Isso também significa que — embora habitualmente se aceite o fato de que existe uma clara linha divisória entre o que é e o que não é dinheiro, e a lei geralmente tente estabelecer essa distinção —, quando se trata dos efeitos causadores de eventos monetários tal diferença não é tão clara.  O que encontramos é, ao contrário, um continuum em que objetos com vários graus de liquidez, ou com valores que podem oscilar independentemente, se confundem um com o outro quanto ao grau em que funcionam como dinheiro.

Sempre considerei útil explicar a meus alunos que é pena qualificarmos o dinheiro como substantivo, e que seria mais útil para a compreensão dos fenômenos monetários se "dinheiro" fosse um adjetivo descrevendo uma propriedade que diferentes objetos poderiam possuir, em graus variados.  "Moeda corrente" é, por esse motivo, uma expressão mais adequada, uma vez que objetos podem ter curso, em graus variáveis, e em diferentes regiões ou setores da população.

Pseudo-exatidão, medida estatística

Defrontamo-nos, agora, com a dificuldade de explicar os fenômenos da vida econômica que ainda não foram bem definidos.  A fim de simplificar nossa explanação, evitando interconexões muito complexas que, de outra forma, se tornariam muito difíceis de acompanhar, introduzimos distinções nítidas entre os atributos dos objetos, atributos esses cujas diferenças, na vida real, não são assim tão nítidas, mas apenas graduais.  É o que ocorre quando tentamos estabelecer uma distinção muito clara entre objetos tais como bens e serviços, bens de consumo e bens de capital, bens duráveis e perecíveis, renováveis e não renováveis, específicos e versáteis, substituíveis e não substituíveis.  Todas essas distinções são muito importantes, mas podem ser muito enganosas se, na popular luta pela pseudoexatidão, tratarmos essas classes com quantidades mensuráveis.  Está aí uma simplificação que talvez seja ocasionalmente necessária, mas que é sempre perigosa e tem favorecido muitos erros em economia.  As diferenças, embora sejam importantes, não significam que seja possível separar, claramente e sem ambiguidade, essas coisas em duas ou mais classes distintas.  Frequentemente o fazemos e, muitas vezes, talvez, precisemos falar como se essa divisão fosse verdadeira.  Mas esse costume pode ser muito ilusório e levar a conclusões totalmente errôneas.

Ficções legais e teoria econômica deficiente

De maneira semelhante, a ficção legal de que há uma coisa claramente definida chamada "dinheiro" que se pode distinguir inequivocamente de outras coisas, ficção essa introduzida para facilitar o trabalho do advogado ou do juiz, nunca foi nem será verdadeira, na medida em que seja necessário fazer referência a coisas que produzem os efeitos característicos de eventos ligados ao dinheiro.  Essa ficção, contudo, causou muito mal, por conduzir à exigência de que, para determinados fins, só se possa empregar o "dinheiro" emitido pelo governo, ou de que deva sempre haver algum tipo de objeto único que possa ser considerado como o "dinheiro" do país.  Levou também, como veremos, ao desenvolvimento, na teoria econômica, de uma explicação do valor de unidades monetárias que em nada contribui para solucionar os tipos de problemas que pretendemos examinar aqui, muito embora apresentem pressuposições simplificadas que nos permitem algumas aproximações simples.

Para podermos prosseguir, será importante ter em mente que diferentes tipos de dinheiro podem diferir um do outro em duas dimensões distintas, embora não totalmente estanques: aceitação (ou liquidez) e o comportamento esperado (estabilidade ou variabilidade) de seu valor.  A expectativa de estabilidade evidentemente afetará a liquidez de um tipo particular de dinheiro, mas pode ser que, a curto prazo, a liquidez seja, às vezes, mais importante que a estabilidade, ou que a aceitação de um dinheiro mais estável possa, por algum motivo, ser restrita a círculos bastante limitados.

Significados e definições

Talvez seja esse o lugar mais conveniente para acrescentar afirmações explícitas sobre as acepções em que usaremos outros termos que ocorrem com frequência.  Terá ficado claro que, no presente contexto, é mais prático falar de "moedas correntes" do que de "dinheiros", não só porque é mais fácil usar o primeiro termo no plural, mas também porque, como vimos, o termo "moedas correntes" enfatiza um determinado atributo.  Também empregaremos a expressão "moedas correntes", talvez indo um pouco contra a acepção original do termo, de forma a incluir não somente papéis e qualquer outro tipo de dinheiro "que corre de mão em mão", mas também saldos bancários sujeitos a cheque e outros meios de troca que podem ser usados para a maioria dos fins para os quais se usam cheques.  Não há, porém, como acabamos de assinalar, qualquer necessidade de uma distinção pronunciada entre o que é e o que não é dinheiro.  Será melhor que o leitor permaneça cônscio de que temos de lidar com um conjunto de objetos que tem um grau variado de aceitabilidade, e que se confundem, na faixa inferior, com objetos que claramente não são dinheiro.

Embora frequentemente façamos referência às instituições que emitem moeda corrente simplesmente como "bancos", isto não quer dizer que todos os bancos deverão emitir dinheiro.  O termo "taxa cambial" será usado em todo o texto em relação a taxas de câmbio entre moedas; e o termo "bolsa de moedas correntes" (análogo a bolsa de valores), para o mercado organizado de moedas correntes.  Ocasionalmente, falaremos também em "substitutos do dinheiro", quando tivermos que examinar casos limítrofes na escala de liquidez — tais como cheques de viagem, cartões de crédito e saque bancário a descoberto — em relação aos quais seria arbitrário afirmar que são ou não são parte do meio circulante.

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Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais".

domingo, 17 de julho de 2011

Mises não era um excêntrico em seu tempo

Nota introdutória: Hoje o debate em torno da ciência econômica - encastelado nas universidades ou não - é amplamente dominado pelo referencial metodológico positivista/empirista. Quando os adeptos do mainstream se deparam com argumentos calcados no apriorismo, não exitam em rotular o interlocutor de não-científico, excêntrico, esotérico e até mesmo de "irresponsável".

O texto abaixo, extraído de A ciência econômica e o método austríaco (H-H. Hoppe), mostra como Mises simplesmente expressou com outros termos a metodologia amplamente aceita em seu tempo. Ao sistematizar a lógica da ação humana (praxeologia) utilizando o apriorismo, o famoso economista austríaco apenas estava avançando numa trilha iniciada por outros pensadores inseridos numa longa tradição científico-filosófica.

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O que levou Mises a caracterizar a economia como uma ciência a priori? Se levarmos em conta o panorama atual pode parecer surpreendente vir à saber que Mises não considerava que seu conceito estivesse desalinhado com a visão predominante do começo do século XX. Mises não quis prescrever um comportamento aos economistas oposto àquele que eles já tinham. Ao contrário, ele considerou suas realizações como as de um filósofo da ciência econômica, ao sistematizar, e deixar explícito o que a ciência econômica realmente era, e como ela houvera sido implicitamente concebida por praticamente todos aqueles que se consideravam economistas.

E isto realmente era verdade. Ao dar uma explicação sistemática ao que até então era formalmente apenas implícito e não declarado, Mises introduziu algumas distinções conceituais e terminológicas que antes eram obscuras e desconhecidas, ao menos para o mundo anglófono. Porém, sua posição sobre o status da ciência econômica era em sua essência totalmente compatível com a visão, naquele tempo, ortodoxa sobre o assunto. Eles não empregavam o termo "a priori", mas os economistas da corrente dominante como Jean Baptiste Say, Nassau Senior, e John E. Cairnes, por exemplo, descreviam a ciência econômica de modo muito similar.

Say escreveu: "Um tratado sobre economia política estará ... confinado a enunciação de uns poucos princípios, que sequer precisam ser sustentados por provas ou ilustrações; pois eles não serão nada além da expressão daquilo que todo mundo conhecerá, organizado de uma forma conveniente para compreendê-los, assim como em seu escopo integral e suas relações". E "a economia política ...  sempre que os princípios que constituem suas bases forem as deduções rigorosas de fatos comuns inegáveis, estará baseada sobre uma fundação imóvel".

De acordo com Nassau Senior, "as premissas [econômicas] consistem de algumas proposições gerais, do resultado de observações, ou da consciência, e dificilmente requerem provas, ou mesmo uma declaração formal, as quais quase todo homem, tão logo ele as escute, reconhece como familiares a seus pensamentos, ou pelo menos como já presentes em seu conhecimento anterior; e suas deduções são praticamente gerais, e, se ele raciocinou direito, tão certas quanto suas premissas". E os economistas deveriam estar "cientes que a ciência depende mais da razão do que da observação, e que sua principal dificuldade não é a averiguação de seus fatos, e sim o uso de seus termos".

E John E. Cairnes observa que enquanto "a raça humana não possui nenhum conhecimento direto dos princípios físicos definitivos" ... "os economistas já começam com um conhecimento das causas definitivas" ... "Deste modo, no começo de sua pesquisa, pode ser considerado que o economista já conhece aqueles princípios definitivos que regem os fenômenos que constituem o assunto de seu estudo, a descoberta que é a tarefa mais árdua para o inquiridor das investigações físicas". "O ato de presumir [na economia] claramente seria algo sem propósito, visto que possuímos em nossa consciência e no testemunho de nossos sentidos... prova clara e direta daquilo que queremos saber. Conseqüentemente, em Economia Política as hipóteses nunca são usadas como uma ajuda para se chegar a descoberta de causas e leis definitivas."

As opiniões de Menger, Böhm-Bawerk e Wieser, predecessores de Mises, eram iguais: Eles também definiam a ciência econômica como uma disciplina em que as proposições - em contraste com as das ciências naturais - podem receber alguma justificação definitiva. No entanto, eles novamente fazem isto sem empregar a mesma terminologia usada por Mises.

E finalmente, a caracterização epistemológica da ciência econômica feita por Mises também foi considerada bastante ortodoxa - e com certeza nada exclusiva, como Blaug a teria considerado - após ter sido explicitamente formulada por Mises. O livro de Lionel Robbins The Nature and Significance of Economic Science, que foi lançado em 1932, nada mais é do que uma versão de certa forma suavizada da descrição que Mises faz da ciência econômica como praxeologia. Não obstante ele foi respeitado pelos economistas profissionais como a estrela guia metodológica por quase vinte anos.

Extraído de A ciência econômica e o método austríaco, pág. 11-13.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Os muitos eufemismos para criação de dinheiro

por Thorsten Polleit (originalmente publicado em janeiro de 2011)

Linguagem confusa, pensamento confuso

De acordo com os ensinamentos do filósofo grego Parmênides, a linguagem ilustra o pensamento humano (e o raciocínio). Linguagem confusa é, portanto, equivalente a pensamento confuso; pensamento confuso, por sua vez, provoca ações não intencionais e resultados não desejados. [1]

“Linguagem dupla” (doublespeak) – um termo que ganhou destaque por meio do trabalho de Eric Blair (1903-1950), mais conhecido como George Orwell – é uma forma notável de linguagem e pensamento confusos. O termo era, na verdade, derivado dos termos “novilíngua” (newspeak) e “duplipensamento” (doublethink), os quais Orwell usou em seu romance 1984, publicado em 1949 [2]. Enquanto estava sob a instrução supressiva do Partido, a mente do protagonista, Winston Smith,

mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica,repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar. [3]
Um eufemismo é uma forma de linguagem dupla: é um artifício retórico às vezes utilizado intencionalmente e às vezes não – um paliativo linguístico, o que representa uma distorção da verdade – em muitos casos empregado para evitar uma ofensa às pessoas. Na vida real, eufemismos podem ser utilizados por alguns para tentar legitimar ações que vão contra o interesse de outros. Nesse sentido, eufemismos representam uma “manipulação da linguagem” e uma “manipulação por meio da linguagem”.

Eufemismos na esteira da crise de crédito


Desde a eclosão da chamada crise internacional dos mercados de crédito, eufemismos têm tido grande destaque. Isso é válido, em particular, para os especialistas em política monetária, que devotam grande esforço para propagandear uma variedade de medidas políticas como sendo de interesse do bem comum, uma vez que elas supostamente combateriam a crise de crédito. Considere os seguintes exemplos:



1. A expressão “política monetária não convencional” retrata a ação do banco central a partir de uma perspectiva bastante favorável [4]. O adjetivo “convencional” significa “hereditário” e “obsoleto”, enquanto “não convencional” pode sugerir algo na linha de uma ação “corajosa” e “inovadora”.


2. Usar a expressão “política monetária agressiva” funciona do mesmo modo [5]. Por exemplo, ela geralmente se refere a um corte drástico nas taxas de juros oficiais em direção a níveis de baixa recorde, ou a uma grande elevação na oferta de moeda à luz de uma recessão que se aproxima, transmitindo a idéia de que os formuladores de política tomam medidas “ousadas” e “corajosas” para o bem comum.


3. O termo “quantitative easing” faz com que seja muito mais difícil, até mesmo impossível (para o grande público), desvendar o que tal política monetária realmente é – ou seja, uma política de crescimento da oferta monetária (dinheiro criado do nada), a qual, por sua vez, é o mesmo que uma política inflacionista. [6]


4. Falar sobre uma “política monetária de juros baixos” escamoteia o fato de que a política monetária empurra a taxa de juros de mercado abaixo da taxa natural de juros (a taxa de preferência intertemporal da sociedade), o que necessariamente leva a maus investimentos, em vez de inaugurar uma recuperação econômica.


5. “Neutralização do aumento da base monetária” é claramente enganador, já que um crescimento no estoque de dinheiro não é e nunca poderá ser neutro. Ele é necessariamente acompanhado por efeitos redistributivos – independentemente de os receptores da injeção de dinheiro adicional (que foi criado do nada) deterem esses saldos como “reserva legal” ou na forma de, digamos, depósitos a prazo[7].


6. Referir-se à "ampla liquidez" (como um fator que contribui para a "crise de crédito") tende a encobrir o fato de que os bancos centrais têm inflacionado a oferta de moeda (por meio da expansão de crédito de circulação bancária).[8] O termo "liquidez" tende a disfarçar o fato de que as condições monetárias desfavoráveis são um resultado da ação dos bancos centrais.


Um bom exemplo de um recente eufemismo no campo da política monetária foi o anúncio feito pelo Conselho Governamental do Banco Central Europeu (BCE), no dia 10 de maio de 2010, dizendo que ele iria:
intervir no mercado mobiliário da dívida pública e privada na zona do euro (Programa de Mercados Mobiliários) para assegurar profundidade e liquidez naqueles seguimentos de mercado que são disfuncionais. O objetivo deste programa é abordar o mau funcionamento do mercado mobiliário e restaurar um mecanismo de transmissão de política monetária apropriado. [9]
Tal política monetária pode ser vista como um subsídio aos preços dos títulos de alguns governos emitentes na zona do euro – ou seja, aqueles que são cada vez mais vistos como insolventes pelos investidores –, favorecendo, portanto, alguns emitentes (e investidores detentores desses títulos) à custa de outros.


Na prática, essa política será algo semelhante a uma política de preços mínimos para os títulos de alguns governos emitentes quando o banco central fizer compras que mantenham os preços de certos títulos acima daqueles que, de outra forma, teriam prevalecido.


Linguagem confusa, resultados não desejados


Com os especialistas em política monetária fazendo uso crescente de linguagem confusa, as forças corretivas contra políticas monetárias perniciosas são enormemente reduzidas. Isso acontece porque uma linguagem confusa – e seu resultado, pensamento confuso – faz com que se torne cada vez mais difícil para o público entender as conseqüências a médio e longo prazo das medidas adotadas; e tal entendimento é claramente necessário para resistir às políticas danosas.


O uso perpétuo de linguagem confusa pode resultar em conseqüências sociais que, na verdade, são desejadas por poucos. Considere o caso de uma progressiva expansão do governo. A razão pela qual o aparato estatal continua crescendo à custa do setor privado é, principalmente, devido à aquisição, por parte do governo, do controle total da produção de dinheiro. Detendo o monopólio da oferta de dinheiro, o governo pode elevar a oferta por meio da expansão de crédito sem base em poupança alguma. 


Com a criação de dinheiro, o governo pode aumentar – e realmente o faz – seus gastos muito além do montante que os pagadores de impostos estão preparados para entregar ao estado. Como resultado, mais e mais pessoas tornam-se dependentes dos gastos do governo (algumas até de forma voluntária), seja como servidores públicos, fornecedores do governo, ou destinatários de pensões, saúde, educação e segurança pública.


Cedo ou tarde a dependência da ajuda governamental alcança, e até ultrapassa, um nível crítico. Dessa forma, as pessoas verão uma política monetária de constantes aumentos na oferta de dinheiro como sendo mais favorável do que se o governo decretasse calote em suas dívidas, o que iria extinguir qualquer esperança de receber benefícios do estado no futuro. Em outras palavras, a política inflacionária, ou mesmo hiperinflacionária, será vista como a política do mal menor.


Graças à linguagem dupla dos especialistas em política monetária, a utilização de políticas monetárias que levam a uma alta inflação pode não ser percebida pelo grande público. A política monetária pode, portanto, ser desencadeada de forma que o público não concorde caso seja informado de suas consequências a médio e longo prazo.


Como resultado, há uma forte razão para temer que a confusa linguagem orwelliana e o pensamento confuso que ela produz pavimentem o caminho para a hiperinflação.


Thorsten Polleit é Professor Honorário da Escola de Finanças e Administração de Frankfurt.


Notas:


[1] Nota do Editor: as datas de nascimento e morte de Parmênides são objeto de debate. Ele provavelmente escreveu a maior parte de sua obra antes do ano 500 A.C.


[2] Note que o termo “linguagem dupla” não aparece em nenhum lugar na obra de Orwell, 1984.


[3] Orwell, G. 1984. Tradução de Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005, p. 36-37.


[4] A expressão pode ser encontrada frequentemente na mídia financeira. De qualquer forma, ela também é utilizada na literatura acadêmica. Veja, por exemplo, Curdia, V., Woodford, M. (2010), Conventional and Unconventional Monetary Policy. In: Federal Reserve of St. Louis Review, jul./ago., 92(4), p. 229–264. Deve-se notar que, no último artigo, os autores não apresentam nenhuma definição do que realmente querem dizer com “política monetária não convencional”. Uma definição de tipos pode ser encontrada em Bini Smaghi, L., Conventional and unconventional monetary policy, conferência principal no International Center for Monetary and Banking Studies (ICMB), Gênova, 28 abr. 2009: “As ferramentas não convencionais incluem uma grande quantidade de medidas destinadas a facilitar as condições de financiamento.” No entanto, tal definição basicamente inclui todos os tipos de medidas políticas:
Tendo ao seu dispor essas opções de possíveis medidas políticas– as quais não são mutuamente exclusivas – os formuladores de política monetária têm que definir, de forma clara, os objetivos intermediários de suas políticas não convencionais. Estes podem variar desde o provimento de liquidez adicional do banco central aos bancos ou até mesmo atacar diretamente a escassez de liquidez e spreads de crédito em certos segmentos de mercado. Os formuladores de política, então, têm que selecionar as medidas que melhor se ajustam àqueles objetivos.
[5] Veja, por exemplo, Bank for International Settlement, 80º Relatório Anual, 28 jun. 2010, p. 36.


[6] "Quantitative easing" é um crescimento na oferta da base monetária, uma política monetária adotada no caso de a taxa de juros oficial atingir zero porcento. O termo se tornou público pelo Banco do Japão, que adotou a política de quantitative easing, de março de 2001 a março de 2006. Veja, por exemplo, Ugai, H., Effects of the Quantitative Easing Policy: A Survey of Empirical Analyses, Série de Documentos do Banco do Japão, n. 6, jul. 2006.


[7] Por exemplo, o presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, disse antes do Comitê de Negócios Econômicos e Monetários do Parlamento Europeu, em 21 de junho de 2010:
Como o objetivo do programa não é injetar liquidez adicional no sistema bancário, nós neutralizamos completamente a aquisição de títulos por meio de operações específicas de reabsorção. Como resultado, o nível existente de liquidez e as taxas do mercado monetário não são afetados pelo programa. Em outras palavras, a nossa postura de política monetária não é afetada, e não há riscos inflacionários relacionados a esse programa.
[8] A ampla liquidez tornou-se um termo muito usado. Veja, por exemplo, Bank of France Bulletin Digest, n. 158, fev. 2007, p. 1–2; e também Hirose, Y., Ohyama, S., Taniguchi, K., Identifying the Effect of Bank of Japan's Liquidity Provision on the Year-End Premium: A Structural Approach, Série de Documentos do Banco do Japão, n. 9, E6, dez. 2009.


[9] Declaração do BCE à imprensa: "BCE decide sobre as medidas para enfrentar graves tensões nos mercados financeiros", 10 de maio de 2010.


[10] Note que há uma relação reversa entre o preço do título e seu retorno: se a taxa de juros de mercado sobe (cai), o preço do título cai (sobe). Então, uma política de preços mínimos é essencialmente o mesmo que uma política de taxa máxima de juros.


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Tradução de Marcelo Aguiar Cerri e Raysa Sales

quarta-feira, 6 de julho de 2011

"Trilogia" Alceu Garcia

Alguns textos têm a incrível capacidade de concatenar e esclarecer conceitos os quais já conhecíamos mas que estavam um tanto desconexos. Esse é o grande valor dos três artigos abaixo, cuja lavra é de Alceu Garcia (pseudônimo de Pedro Mayall Guilayn). Os trabalhos foram publicados no início da década passada.

Os créditos dessas valiosas recomendações vão para Lucas Mendes, editor do blog Austríaco. Nossos sinceros agradecimentos.

A teoria econômica de Lord Keynes e a ideologia triunfante do nosso tempo
A obra teórica de Keynes foi na verdade anti-teórica. Seu objetivo era nada mais, nada menos do que demolir a ciência econômica como tal e substituí-la por um simulacro de ciência. Esse fôra o desejo de muitos pensadores socialistas antes de Keynes. Como Arthur Marget observou, Proudhon, Marx, Veblen, Schmoller, Henry George, Hobson e suas respectivas escolas haviam atacado violentamente a economia, mas todos fracassaram sobretudo por serem outsiders. Keynes, ao contrário, estava muito bem situado dentro da cidadela mesma da economia e por isso sua investida foi bem sucedida. Keynes foi um presente de grego dos fabianos para a ciência econômica, um cavalo de tróia introduzido no coração da fortaleza. Seu trabalho subsequente foi o de abrir os portões para as hordas fabianas ocuparem o terreno.

Concorrência, monopólio e estado
Concorrência na economia não é um esporte com jogadores em condições de igualdade; é um processo no qual os ganhadores não são os concorrentes e sim os consumidores. É o interesse destes que deve ser privilegiado, não o dos produtores. Por outro lado, se a entrada num determinado mercado exige recursos vultosos, isso tem o mérito de desencorajar amadores e diletantes, pois entregar recursos escassos a produtores ineficientes significa desperdiçá-los.

A Escola Austríaca e a refutação cabal do socialismo
Pois um discípulo de Bohm-Bawerk, Ludwig von Mises, foi mais além, atingindo a raiz do problema do socialismo, que é ainda mais profunda do que a complicação dos incentivos permite vislumbrar. Mises descobriu que a atividade econômica em uma economia complexa depende de um cálculo prévio que leve em conta os preços monetários dos fatores de produção. Impossível esse cálculo, impossível a atividade econômica. Ocorre que, numa sociedade socialista pura, todos os fatores de produção pertencem a um único dono: o Estado. Sem propriedade privada os fatores não são trocados e, logo, não têm preço. A escassez relativa dos fatores de produção e seus usos alternativos fica oculta e o planejador central inexoravelmente é levado a agir às cegas.

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