sábado, 25 de fevereiro de 2012

Individualismo e Coletivismo

por Friedrich A. Hayek (extraído de O Caminho da Servidão, capítulo 3)

Os socialistas acreditam em duas coisas absolutamente diversas e talvez até contraditórias, liberdade e organização. ~ Elie Halévy

Antes de prosseguir na análise de nosso tema principal, resta-nos um obstáculo a transpor: esclarecer um equívoco responsável em grande parte pelo modo como estamos sendo levados a situações não desejadas por ninguém. Esse equívoco, na realidade, diz respeito ao próprio conceito de socialismo. Tal conceito pode significar simplesmente os ideais de justiça social, maior igualdade e segurança que são os fins últimos do socialismo - e é muitas vezes usado nesse sentido.

Mas significa também o método específico pelo qual a maior parte dos socialistas espera alcançar esses fins, e que para muitas pessoas inteligentes são os únicos métodos pelos quais esses fins podem ser plena e rapidamente alcançados. Nesse sentido, socialismo equivale à abolição da iniciativa privada e da propriedade privada dos meios de produção, e à criação de um sistema de "economia planificada" no qual o empresário que trabalha visando ao lucro é substituído por um órgão central de planejamento.

Muitos se definem socialistas, embora considerem apenas a primeira acepção do termo, isto é, o socialismo representado pela justiça social, e acreditam profundamente nos fins últimos do socialismo sem contudo cogitar nem entender a maneira de alcançá-los - sabem apenas que devem ser alcançados a qualquer custo. Mas para quase todos os que não consideram o socialismo uma simples esperança e sim um objeto da política prática, os métodos característicos do socialismo moderno são tão essenciais quanto seus próprios fins. Por outro lado, muitos que, como os socialistas, prezam os fins últimos dessa doutrina, recusam-se a apoiá-la por estarem convencidos de que os métodos propostos pelos socialistas põem em perigo outros valores. O debate em torno do socialismo tornou-se dessa forma em grande parte um debate sobre meios e não sobre fins - embora a questão implique também saber se os diferentes fins do socialismo poderão ser alcançados simultaneamente.

Isso já seria suficiente para criar confusão. E a confusão aumentou porque em geral não se admite que os que repudiam os meios apreciem os fins. E ainda não é tudo. A situação torna-se mais complexa porque o mesmo meio - a "planificação econômica", principal instrumento da reforma socialista - pode ser utilizado para vários outros fins. Se quisermos realizar uma distribuição da renda conforme as ideias correntes de justiça social, torna-se imperativo centralizar a direção da atividade econômica. Consequentemente, a "planificação" é desejada por todos os que exigem que a "produção para o consumo" substitua a produção orientada para o lucro. Mas essa planificação não será menos indispensável se a distribuição da renda for efetuada de modo oposto ao que reputamos justo. Se pretendêssemos, por exemplo, que uma elite racial, os nórdicos, os membros de um partido ou uma aristocracia fossem beneficiados por uma maior parcela de bens e amenidades, os métodos que seríamos obrigados a empregar seriam os mesmos que empregaríamos para assegurar uma distribuição igualitária.

Talvez possa parecer injusto empregar o termo "socialismo" para designar os métodos e não as suas finalidades, ou aplicar a um determinado método o termo que para muitos exprime um ideal último. Seria preferível talvez chamar de coletivismo os métodos que podem ser usados para uma grande variedade de fins, e considerar o socialismo uma espécie desse gênero. No entanto, ainda que para a maioria dos socialistas somente uma espécie de coletivismo represente o verdadeiro socialismo, não devemos esquecer que o socialismo é uma espécie de coletivismo e que, portanto, tudo o que se aplica ao coletivismo se aplica também ao socialismo. Quase todos os pontos de divergência entre socialistas e liberais referem-se aos métodos comuns a todas as formas de coletivismo e não aos fins específicos para os quais os socialistas desejam empregá-los; e todas as consequências de que trataremos neste livro decorrem dos métodos coletivistas, independentemente dos fins para os quais são usados. Também não devemos esquecer que o socialismo não é apenas a espécie mais importante de coletivismo ou de "planificação"; é também a doutrina que persuadiu inúmeras pessoas de tendências liberais a se submeterem mais uma vez ao rígido controle da vida econômica que haviam abolido, pois, segundo Adam Smith, tal controle faz com que os governos, "para se manterem, sejam obrigados a tornar-se opressores e tirânicos".

Os problemas causados pela ambiguidade na linguagem política comum não desaparecerão, mesmo que passemos a aplicar o termo "coletivismo" para indicar todos os tipos de "economia planificada", seja qual for a finalidade do planejamento. O significado do termo tornar-se-á mais preciso se deixarmos claro que por ele entendemos a espécie de planejamento necessário à realização de qualquer ideal distributivo. Mas como a ideia de planejamento econômico central seduz em grande parte pela própria indefinição de seu significado, é indispensável estabelecer-lhe o sentido preciso antes de discutirmos suas consequências.

O conceito de "planejamento" deve sua popularidade em grande parte ao fato de todos desejarmos, obviamente, tratar os problemas ordinários da forma mais racional e de para tanto precisarmos utilizar toda a capacidade de previsão possível. Neste sentido, se não for um completo fatalista, todo indivíduo será um planejador; todo ato político será (ou deveria ser) um ato de planejamento, de sorte que só haverá distinção entre o bom e o mau planejamento, entre um planejamento sábio e previdente e o míope e insensato. Um economista, que estuda a maneira como os homens de fato planejam suas atividades e como deveriam planejá-las, seria a última pessoa a opor-se ao planejamento em tal acepção genérica. Mas não é nesse sentido que nossos entusiastas de uma sociedade planejada empregam atualmente esse termo; tampouco é apenas nesse sentido que será necessário planejar se desejarmos a distribuição da renda ou da riqueza conforme determinado padrão. Segundo os modernos planejadores, e os objetivos que eles perseguem, não basta traçar uma estrutura permanente, a mais racional possível, dentro da qual cada pessoa conduza suas várias atividades de acordo com seus planos individuais. Este plano liberal, segundo eles, não é um plano e, de fato, não tem por objetivo satisfazer qualquer ideia relativa à parcela da renda que caberá a cada indivíduo. O que nossos planejadores exigem é um controle centralizado de toda a atividade econômica de acordo com um plano único, que estabeleça a maneira pela qual os recursos da sociedade sejam "conscientemente dirigidos" a fim de servir, de uma forma definida, a finalidades determinadas.

O debate entre os planejadores modernos e os seus adversários, por conseguinte, não visa a estabelecer se devemos ou não escolher racionalmente entre as várias formas possíveis de organização da sociedade; não diz respeito à necessidade de recorrermos à previsão e ao raciocínio sistemático no planejamento de nossos assuntos ordinários. Gira em torno da maneira de proceder nesse sentido. Busca determinar se os detentores do poder coercitivo devem limitar-se em geral a criar condições em que os próprios indivíduos disponham de um grau de conhecimento e iniciativa que lhes permita planejar com o maior êxito; ou se a utilização racional dos nossos recursos exige uma direção e organização central de todas as nossas atividades segundo algum "projeto" elaborado para este fim. Os socialistas de todos os partidos apropriaram-se do termo "planejamento" para designar este último tipo de organização, e a palavra passou a ser empregada usualmente nesse sentido. Mas embora com isso se pretenda sugerir que o planejamento central é a única maneira racional de conduzirmos os nossos negócios, nada fica provado, é claro. E esta permanece a questão sobre a qual discordam planejadores e liberais. É importante não confundir a oposição a essa espécie de planejamento com uma dogmática atitude de laissez-faire. A doutrina liberal é a favor do emprego mais efetivo das forças da concorrência como um meio de coordenar os esforços humanos, e não de deixar as coisas como estão. Baseia-se na convicção de que, onde exista a concorrência efetiva, ela sempre se revelará a melhor maneira de orientar os esforços individuais. Essa doutrina não nega, mas até enfatiza que, para a concorrência funcionar de forma benéfica, será necessária a criação de uma estrutura legal cuidadosamente elaborada, e que nem as normas legais existentes, nem as do passado, estão isentas de graves falhas. Tampouco deixa de reconhecer que, sendo impossível criar as condições necessárias para tornar efetiva a concorrência, seja preciso recorrer a outros métodos capazes de orientar a atividade econômica. Todavia, o liberalismo econômico é contrário à substituição da concorrência por métodos menos eficazes de coordenação dos esforços individuais. E considera a concorrência um método superior, não somente por constituir, na maioria das circunstâncias, o melhor método que se conhece, mas, sobretudo por ser o único método pelo qual nossas atividades podem ajustar-se umas às outras sem a intervenção coercitiva ou arbitrária da autoridade. Com efeito, uma das principais justificativas da concorrência é que ela dispensa a necessidade de um "controle social consciente" e oferece aos indivíduos a oportunidade de decidir se as perspectivas de determinada ocupação são suficientes para compensar as desvantagens e riscos que a acompanham.

(...)

A centralização absoluta da gestão da atividade econômica ainda atemoriza a maioria das pessoas, sobretudo pela ideia em si mesma, mas também devido à tremenda dificuldade que isso implica. Se, todavia, estamos nos aproximando rapidamente de tal situação, é porque muitos ainda acreditam que seja possível encontrar um meio-termo entre a concorrência "atomística" e o dirigismo central. Com efeito, à primeira vista nada parece mais plausível, ou tem maior probabilidade de atrair as simpatias dos homens sensatos, do que escolher como meta não a extrema descentralização da livre concorrência nem a centralização completa representada por um plano único, mas uma judiciosa combinação dos dois métodos. Não obstante, o simples senso comum não se revela um guia seguro neste campo. Embora a concorrência consiga suportar certo grau de controle governamental, ela não pode ser harmonizada em qualquer escala com o planejamento central sem que deixe de operar como guia eficaz da produção. Tampouco é o "planejamento" um remédio que, tomado em pequenas doses, possa produzir os efeitos esperados de sua plena aplicação. Quando incompletos, tanto a concorrência como o dirigismo central se tornam instrumentos fracos e ineficientes. Eles constituem princípios alternativos usados na solução do mesmo problema e, se combinados, nenhum dos dois funcionará efetivamente e o resultado será pior do que se tivéssemos aderido a qualquer dos dois sistemas. Ou, em outras palavras, planificação e concorrência só podem ser combinadas quando se planeja visando à concorrência, mas nunca contra ela.

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Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais".

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A economia de mercado controlada

por Ludwig von Mises (extraído de "Uma Crítica ao Intervencionismo")

A doutrina dominante na economia de mercado controlada

Com poucas exceções, os comentaristas contemporâneos dos problemas econômicos estão defendendo a intervenção econômica. Essa unanimidade não significa, necessariamente, que eles aprovem as medidas intervencionistas do governo ou outras forças coercitivas.   Autores de livros, ensaios e artigos sobre economia e plataformas políticas exigem medidas intervencionistas antes que sejam tomadas, mas, uma vez impostas, ninguém as aprecia. Então, todos - e até mesmo as autoridades responsáveis por elas - qualificam-nas de insuficientes e insatisfatórias.   Geralmente, a partir daí, surge a exigência da substituição das intervenções insatisfatórias por outras medidas mais eficientes.   E, assim que as novas exigências são atendidas, a mesma cena se repete. O desejo universal do sistema intervencionista tem como contrapartida a rejeição de todas as medidas concretas da política intervencionista.

Às vezes, durante a discussão sobre a revogação parcial ou total de uma medida de controle, alguns se opõem à mudança, embora, via de regra não aprovem tal medida. Seu desejo é impedir medidas ainda piores. Por exemplo, raramente agradam aos pecuaristas as tarifas e normas de inspeção sanitária, adotadas a fim de restringir a importação de animais, carnes e gorduras do exterior. Mas, tão logo os consumidores exigem a revogação ou relaxamento dessas restrições, os fazendeiros levantam-se em sua defesa. Os maiores defensores da legislação trabalhista têm rotulado todas as medidas de controle adotadas até agora de insatisfatórias - no melhor dos casos, são aceitas como parte do que precisa ser feito. No entanto, se qualquer uma dessas medidas vier a ser revogada - por exemplo, o limite legal de oito horas para a jornada de trabalho - eles se levantam em sua defesa.

Qualquer pessoa compreenderá de imediato esse posicionamento diante de determinadas intervenções ao admitir que a intervenção seja sempre ilógica e impertinente, uma vez que nunca chega a atingir os objetivos que seus defensores e autores, perseguiam. É, contudo, digno de nota que se defenda obstinadamente o intervencionismo, apesar de suas deficiências e do fracasso de todas as tentativas de demonstrar a lógica teórica desse sistema. Para a maioria dos observadores, a ideia de voltar aos princípios liberais clássicos parece tão absurda, que raramente se preocupam com ela.

Os defensores do intervencionismo frequentemente apelam para a tese de que o liberalismo clássico pertence ao passado. Hoje, eles nos dizem, estamos vivendo numa era de "política econômica construtiva", ou seja, na era do intervencionismo. O curso da história não pode voltar atrás, e aquilo que passou não pode ser restaurado. Quem invoca o liberalismo clássico e, desta forma, alardeia que a solução é a "volta a Adam Smith" está pedindo o impossível.

Não é absolutamente verdadeiro que o liberalismo contemporâneo seja idêntico ao liberalismo britânico dos séculos XVIII e XIX. Certamente, o liberalismo moderno baseia-se nas grandes ideias desenvolvidas por Hume, Adam Smith, Ricardo, Bentham e Wilheim Humboldt. Liberalismo, porém, não é doutrina fechada e dogma rígido. É uma aplicação dos princípios da ciência à vida social do homem, a política. A economia e as ciências sociais deram largos passos desde que se introduziu a doutrina liberal. Assim, também o liberalismo teve de mudar, embora seu ideário básico tenha permanecido inalterado. Quem estudar o liberalismo moderno, logo descobrirá as diferenças entre os dois. Concluirá que o conhecimento do liberalismo não pode provir apenas de Adam Smith, e que o pedido de revogação das medidas intervencionistas não corresponde ao movimento chamado "volta a Adam Smith".

O liberalismo moderno difere do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, no mínimo tanto quanto o intervencionismo moderno difere do mercantilismo dos séculos XVII e XVIII. Não faz sentido chamar de anacronismo o retorno ao livre comércio, se o retorno ao sistema de proteção e proibição não for também, considerado um anacronismo.

Escritores que atribuem a mudança na política econômica somente ao espírito da época certamente não admitem explicação científica para o intervencionismo. Dizem que o espírito capitalista foi substituído pelo espírito da economia obstruída. O capitalismo envelheceu e, consequentemente, deve render-se ao novo. E dizem que esse novo é a economia obstruída pela intervenção do governo ou por qualquer outro fator. Quem acreditar, seriamente, que estas afirmações podem refutar as conclusões da economia, com relação aos efeitos dos impostos de importação e controles de preços, certamente estará perdido.

Há outra doutrina popular baseada no conceito equivocado de "livre concorrência". A princípio, alguns autores criam um ideal de competição livre, em igualdade de condições - como os postulados das ciências naturais. Descobrem, depois, que a ordem da propriedade privada não corresponde absolutamente a esse ideal. Mas, por acreditarem que a realização deste postulado de "competição realmente livre e em igualdade de condições" seja a mais elevada meta da política econômica, eles sugerem várias reformas. Em nome do ideal, alguns exigem uma espécie de socialismo que chamam de "liberal" porque percebem, visivelmente, neste ideal a essência do liberalismo. Outros exigem várias outras medidas intervencionistas. Contudo, a economia não é um grande prêmio em que os participantes competem de acordo com as regras do jogo. Caso se tenha de determinar qual o cavalo que consegue correr certa distância em menos tempo, as condições devem ser iguais para todos os cavalos. Entretanto, será válido tratarmos a economia como um teste de eficiência para determinar qual dos concorrentes, em condições idênticas, pode produzir a preços mais baixos?

A competição como fenômeno social nada tem em comum com as competições esportivas. Transferir o postulado da "igualdade de condições" das regras do esporte ou da organização de experiências científicas e tecnológicas para a política econômica é um equívoco terminológico. Na sociedade, não apenas sob o sistema capitalista, mas sob qualquer sistema social imaginável, existem competições entre os indivíduos. Os sociólogos e economistas dos séculos XVIII e XIX demonstraram como funciona a competição no sistema social baseado na propriedade privada dos meios de produção. Esta foi a parte essencial da crítica que fizeram às medidas intervencionistas da política mercantilista e do estado voltado para o bem-estar. Esses cientistas demonstraram como as medidas intervencionistas eram ilógicas e inadequadas. Aprofundando-se ainda mais nas pesquisas, verificaram que a ordem econômica que melhor atende aos objetivos econômicos do homem é a que tem por base a propriedade privada. Certamente, os mercantilistas indagavam como o povo se arranjaria se o governo o abandonasse. Os liberais clássicos respondiam que a competição entre negociantes acabaria suprindo os mercados com os bens de consumo necessários aos consumidores. De um modo geral, para pedir o fim do intervencionismo, expressavam-se da seguinte forma: a liberdade de concorrência não deve sofrer limitações. Com o slogan da "livre concorrência" exigiam que a função social da propriedade privada não fosse obstruída pela intervenção do governo. Assim, era possível que, equivocadamente, se pensasse que a essência dos programas liberais não era a propriedade privada, mas a "livre concorrência". Os críticos sociais começaram a perseguir um fantasma nebuloso, a "concorrência genuinamente livre", que nada mais era que o produto de um estudo insuficiente do problema e uma preocupação exagerada com lemas [1].

A apologia do intervencionismo e a refutação da crítica ás intervenções, por parte da teoria econômica, são expressas de modo muito superficiais. Tomemos como exemplo a afirmação de Lampe de que essa crítica
só se justifica quando se demonstra, ao mesmo tempo, que a ordem econômica existente corresponde ao ideal da livre concorrência. Apenas sob total condição é que toda intervenção feita pelo governo corresponde a uma redução da produtividade econômica. Hoje em dia, porém, nenhum cientista social sério se arriscaria a mencionar tal harmonia econômica preestabelecida da forma como os economistas clássicos e seus discípulos otimistas liberais a concebem. Existem tendências no mecanismo de mercado que proporcionam um ajuste nas relações econômicas rompidas. Mas essas forças prevalecem apenas "a longo prazo", ao passo que o processo de reajuste é interrompido por atritos mais ou menos acentuados. Isso dá origem a situações em que a intervenção pelo "poder social" pode ser não só politicamente necessária, mas também economicamente conveniente ...   desde que haja, e que sejam seguidas, recomendações técnicas, disponíveis para o poder público, fundamentadas em análise estritamente científica [2]. 
É extraordinário que esta tese não tenha sido escrita durante as décadas de 1870 ou 1880, quando os Socialistas de Cátedra ofereciam às altas autoridades seus remédios infalíveis para o problema social e suas promessas para a aurora de dias gloriosos. Foi escrita em 1927. Lampe ainda não compreende que a crítica científica ao intervencionismo nada tem a ver com um "ideal de livre competição" e "harmonia preestabelecida" [3]. Os que analisam cientificamente o intervencionismo não chegam a afirmar que a economia não controlada é de algum modo ideal, boa ou isenta de atrito. Não defendem a tese de que toda intervenção corresponde a uma "redução da produtividade econômica". Com sua crítica apenas demonstram que as intervenções não podem atingir os objetivos traçados por seus autores e promotores, e que elas devem ter consequências indesejadas mesmo para seus autores e patrocinadores, por lhes contrariarem as intenções. É assim que os defensores do intervencionismo devem responder. Todavia, não apresentam nenhuma resposta.

Lampe apresenta um programa de "intervencionismo produtivo", que consiste em três pontos [4]. O primeiro é que a autoridade pública "deve, dentro do possível, insistir na redução lenta do nível salarial". Pelo menos, Lampe não nega que qualquer tentativa, por parte da "autoridade pública", no sentido de manter os níveis salariais acima daqueles que a ação do mercado teria estabelecido deve, certamente, gerar desemprego. No entanto, negligencia o fato de que sua própria proposta levaria - num grau menor e por um período de tempo limitado - à intervenção que ele próprio sabia ser inconveniente. Em relação a essas propostas vagas e incompletas, os defensores de controles totais levam a vantagem de parecerem lógicos.   Lampe critica-me por eu não me preocupar com a duração do desemprego sazonal transitório, que provoca atritos, nem com a, gravidade que este poderá atingir [5]. Ora, sem intervenção, o desemprego.não durará muito tempo nem afetará a muitos. Contudo, não há dúvida de que a proposta de Lampe, se posta em prática, causaria um desemprego prolongado, com sérias e graves consequências.   Isso não pode ser negado nem mesmo por Lampe, à luz de sua análise.

De qualquer forma, devemos ter em mente que uma crítica ao intervencionismo não deixa de lado o fato de que, quando algumas intervenções na produção são eliminadas, surgem atritos específicos. Se, por exemplo, todas as restrições à importação fossem suspensas hoje, grandes dificuldades, causadas por essa revogação, se fariam sentir durante algum tempo. Logo depois, porém, haveria uma elevação sem precedentes da produtividade da mão de obra. Esses atritos inevitáveis não podem ser amenizados por um prolongamento regular do tempo destinado à redução da proteção, nem são sempre agravados por tal prolongamento. Contudo, no caso de interferências governamentais nos preços, uma redução lenta e gradual, em vez da abolição imediata, apenas prolonga o tempo em que as consequências indesejáveis da intervenção continuam a ser sentidas.

Os dois outros pontos do "intervencionismo produtivo" de Lampe não requerem crítica especial. Aliás, um deles nem é intervencionista e o outro na verdade, visa à abolição da intervenção. No segundo ponto de seu programa, Lampe exige que a autoridade pública elimine os numerosos obstáculos institucionais que reprimem a mobilidade ocupacional e regional da mão de obra.

Mas isso significa a eliminação de todas as medidas governamentais e sindicalistas que impedem a mobilidade e corresponde, basicamente, à antiga exigência do laissez passer, exatamente o oposto do intervencionismo. E, no terceiro ponto, Lampe sugere que a autoridade política central faça "um exame antecipado e fidedigno da situação econômica geral", o que certamente não é intervenção. Um exame geral da situação econômica pode ser útil para todos, até mesmo para o governo, na medida em que, a partir dele, se pode chegar à conclusão de que não deve, de modo algum, haver interferência.

Quando comparamos o programa intervencionista de Lampe com outros de alguns anos atrás, reconhecemos como as reivindicações de sua escola se tornaram modestas. Esse é um progresso do qual os críticos do intervencionismo podem se orgulhar.


Notas

[1] Ver a crítica desses equívocos em Halm, Die Konkurrenz (A concorrência), Munique e Leipzig, 1929, principalmente p. 131 et seq.

[2] Lampe, Notstandarbeiten oder Lohnabbau?  (Serviços públicos ou reduções de salários?) Iena, 1927, p. 104 et seq.

[3] Quanto à "harmonia preestabelecida", ver, adiante, o ensaio "Antimarxismo", de minha autoria.