por Ubiratan Jorge Iorio (extraído do livro Ação, Tempo e Conhecimento)
Com base no núcleo seminal e nesses elementos propagadores, os economistas austríacos, desde os primórdios com Menger, erigiram uma obra extraordinariamente rica sob o ponto de vista científico, mas que funciona perfeitamente — evidentemente, naquilo que se pode chamar de "perfeição" em uma ciência social — quando tenta explicar o mundo real.
Vejamos resumidamente cada um dos seis campos da teoria econômica que consideramos essenciais para a compreensão do pensamento austríaco.
(a) processo de mercado
A Escola Austríaca não estuda, ao contrário da mainstream economics, mercados em estado de equilíbrio. Nem tampouco utiliza a famosa classificação dos mercados segundo as suas "formas" (concorrência perfeita, oligopólio, concorrência monopolista e monopólio). Ela trabalha com a hipótese de que os mercados são processos que tendem ao equilíbrio (porque os agentes são racionais e aprendem com os erros), mas que, em cada momento distinto do tempo dinâmico, não estão em suas "posições" de equilíbrio.
Para entender isto, basta mencionarmos os principais elementos da teoria. Em primeiro lugar, os mercados são movimentados pela ação humana de seus participantes, tanto no lado da demanda quanto no da oferta. Em segundo lugar, a ação humana se dá ao longo do tempo dinâmico, em que cada instante é uma oportunidade de aprendizado. Terceiro, as transações nos mercados se realizam sob condições de limitação e de dispersão do conhecimento. Quarto, os mercados são ordens espontâneas, sujeitando-se, portanto, a permanentes mutações. Quinto, a ação humana é subjetiva.
Como esperar, então, que o mundo real possa apresentar mercados em "equilíbrio"? Este é um dos principais pontos da teoria austríaca. Os mercados são processos de erros e tentativas, um permanente procedimento de descobertas de novas oportunidades, com uma dinâmica que não dá espaço para o equilíbrio.
(b) função empresarial
A função empresarial é a capacidade individual subjetiva de perceber as possibilidades de ganhos existentes nos mercados. Portanto, ela nada mais é do que uma categoria de ação. Sendo assim, a ação humana pode ser considerada como um fenômeno empresarial, mais especificamente aquela que realça as capacidades perceptiva, criativa e de coordenação do agente.
Como em qualquer ação humana, a ação empresarial acontece em ambiente de incerteza genuína, dadas as limitações de nosso conhecimento. Requer, por sua vez, criatividade e desprendimento, já que o futuro é incerto e uma ação empreendedora tanto pode dar bons resultados como maus resultados. A ação empresarial é um conjunto de escolhas ao longo do tempo em ambiente de incerteza e, como tal, implica em um conjunto de outras ações alternativas a que se deve forçosamente renunciar e o custo é o valor subjetivo dessas ações a que se renuncia.
Como os meios sempre são escassos face aos fins, os agentes buscam primeiro os fins aos quais dão maior valor e apenas depois os demais, relativamente menos importantes. Cada ação é motivada pela crença subjetiva de que os fins escolhidos possuem um valor maior do que o valor dos custos da escolha de uma ação e a diferença entre ambos é o lucro, o elemento que explica a ação.
Para a Escola Austríaca toda ação embute um componente empresarial puro e criativo em sua essência, que não requer qualquer custo e que é exatamente o que permite aproximar o conceito de ação do conceito de função empresarial.
(c) debate sobre o cálculo econômico
Mises, ainda nos anos 20 do século passado, percebeu claramente que o sistema socialista impossibilita o cálculo econômico. Seu argumento era simples: o cálculo econômico requer que os planejadores conheçam os preços; estes, por sua vez, para que possam ser considerados como preços de fato (e não pseudo-preços) pressupõem a existência do processo de mercado, em que as ações de demandantes e ofertantes possam fluir normalmente; e os mercados, para que possam existir, requerem a propriedade privada. Ora, o socialismo não contempla a propriedade privada; portanto, não faz sentido falar em mercados em num sistema socialista; se não há mercados efetivos, não pode haver preços e, não havendo preços, o cálculo econômico torna-se impossível. Por essa razão, Mises afirmava categoricamente, em seu debate com os economistas socialistas, que o sistema que defendiam guiava-se às cegas e estava, portanto, fadado ao fracasso, pela desorganização social e econômica que embute. A história comprovou — e ainda está comprovando — que Mises estava certo.
Os órgãos centrais nesses sistemas são formados por pessoas, e não é razoável admitir que por melhores e mais "puras" sejam suas intenções, possuam o dom da onisciência, que lhes permita conhecer e interpretar os conjuntos dispersos de informações individuais, que estão se alterando e renovando ininterruptamente ao longo do tempo.
Os planejadores nem conseguem saber qual o seu o grau de ignorância sobre as informações necessárias para promover o cálculo correto e a consequente coordenação. E quanto maior o grau de coerção imposto, menores são as possibilidades de realização dos planos, porque a maior repressão tende a aumentar a ausência de coordenação, provocando distorções nos mercados que são progressivamente crescentes com o tempo.
(d) teoria monetária
Os pontos principais da Escola Austríaca a respeito da teoria monetária podem ser resumidos em cino: o primeiro é que os efeitos das variações do estoque de moeda afetam desigualmente os preços relativos, a estrutura de capital, os padrões de produção da economia e alteram os níveis de emprego dos fatores de produção. Já em 1912, em sua obra monumental Teoria da Moeda e do Crédito, Mises chamava a atenção para o fato de que aumentos na oferta de moeda não produzem benefícios para a sociedade, porque eles não possuem capacidade de alterar os serviços de troca proporcionados pela moeda, apenas reduzem o poder de compra de cada unidade monetária.
O segundo é que os ciclos econômicos são fenômenos que, embora se manifestem no chamado setor real da economia, têm causas exclusivamente monetárias.
O terceiro é que a moeda, como qualquer outro bem, tem o seu valor decretado pelo princípio da utilidade marginal, como demonstrou Mises naquela obra, ao resolver o então denominado problema da circularidade austríaco, com o seu famoso teorema da regressão, como veremos no capítulo dedicado à teoria monetária da Escola Austríaca.
E o quarto é que os austríacos definem a inflação não como um simples "aumento contínuo e generalizados de preços", uma vez que essa, na verdade, é a manifestação da inflação; eles a definem como uma queda permanente no poder de compra da moeda, provocada, em última instância, pela emissão de moeda e pela consequente diminuição de sua utilidade marginal.
O último ponto é que a moeda, vale dizer, o sistema monetário, é uma ordem espontânea, um fenômeno que passa permanentemente por evoluções que são resultantes da ação humana, mas não de qualquer planejamento.
(e) teoria do capital
A teoria do capital austríaca, sem dúvida, é um elemento que diferencia essa escola de pensamento de todas as demais, pelo simples fato de que estas não possuem algo que se possa denominar de teoria do capital.
Quem mais contribuiu para uma concepção austríaca do capital foi, sem dúvida, Böhm-Bawerk, que seguiu a tradição iniciada por Menger. Mises, Hayek e outros austríacos trabalharam fortemente para o seu desenvolvimento.
Seu ponto central é o conceito de estrutura de capital ou estrutura de produção, que considera que um bem, desde que começa a ser produzido até ficar acabado na forma de um bem final, passa por várias etapas no processo produtivo. Esses diversos estágios correspondem à estrutura de capital da economia. Portanto, o capital não é homogêneo e muto menos constante, como os modelos macroeconômicos o consideram. Ele é essencialmente heterogêneo e varia com os demais fatores de produção ao longo do tempo.
A heterogeneidade dos bens de capital e o fato de que as economias possuem estruturas de capital levam, entre outras hipóteses (como a do individualoismo metodológico) os economistas austríacos à rejeição da análise macroeconômica.
(f) teoria dos ciclos econômicos
A ABCT (Austrian Business Cycles Theory) foi desenhada por Mises em seu tratado de 1912, posteriormente desenvolvida por Hayek nos anos 30 e depois aperfeiçoada por outros economistas da tradição de Menger, dos quais o mais criativo é o americano Roger Garrison.
É, ao mesmo tempo, uma teoria da moeda, do capital e dos ciclos econômicos. Mostra como a emissão de moeda produz o efeito de diminuir a taxa de juros e, inicialmente, enganar os agentes — que, acreditando que se trata de maior poupança, embarcam em investimentos de maturação mais longa, alargando, assim, a estrutura de capital da economia. Posteriormente, quando esses agentes descobrem que na realidade não se tratava de poupança, mas de moeda "fantasiada" de poupança, a taxa de juros sobe e isso leva a um encolhimento da estrutura de produção, fenômeno que produz desemprego (e que ficou conhecido como efeito concertina ou efeito sanfona), que é maior nos setores mais afastados da produção de bens finais, que foram exatamente aqueles setores inicialmente beneficiados pela expansão monetária.
Assim, a inflação — ou seja, aquela quantidade adicional de moeda que entrou na economia sem lastro — acabará provocando o desemprego de fatores de produção. Como disse Hayek, não há escolha entre comer demais (emitir moeda sem lastro real) e ter indigestão (recessão), porque ambas são inseparáveis, a primeira acarretando a segunda. Essa conclusão — de que o desemprego é a causa natural da inflação — mostra quão equivocadas são as análises keynesianas que ficaram conhecidas como a curva de Phillips, que postulavam a existência de um trade off ou dilema entre inflação e desemprego, de modo que, se algum governo desejasse combater a inflação, teria que aceitar uma taxa de desemprego de mão de obra maior ou, se quisesse reduzir o desemprego, seria forçado a aceitar uma taxa de inflação mais elevada.
Conclusões
Procuramos neste capítulo resumir a multiplicidade de fatores cujo conjunto constitui a Escola Austríaca de Economia, mostrando a importância de cada um deles na construção do edifício e também como se integram entre si.
Ao núcleo seminal ou tríade básica, formada pelo conceito de ação humana, pela concepção dinâmica do tempo e pelo reconhecimento de que o conhecimento possui limitações, acrescentou-se o que se pode denominar de elementos de propagação, a saber, a doutrina da utilidade marginal, o subjetivismo e o conceito de ordens espontâneas. É interessante para o leitor parar neste ponto e fazer o exercício de certificar-se de que cada um desses três últimos elementos decorre dos três primeiros, em maior ou menor intensidade, o que permite que sejam denominados de propagadores.
De posse desse aparato, mostramos suas implicações nos campos da filosofia política, da epistemologia e da economia.
Ação, tempo e conhecimento: eis o universo fascinante da Escola Austríaca de Economia!
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Ubiratan Jorge Iorio é economista e professor de UERJ. Visite seu website.
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