quinta-feira, 30 de junho de 2011

A revolta contra a razão

por Ludwig von Mises (extraído de "Ação Humana", capítulo 3)

Houve, ao longo da história, filósofos que não hesitaram em superestimar a capacidade da razão. Supunham que o homem fosse capaz de descobrir, pelo raciocínio, as causas originais dos eventos cósmicos ou os objetivos que a força criadora do universo, determinante de sua evolução, pretendia alcançar. Discorreram sobre o "absoluto" com a tranquilidade de quem descreve o seu relógio de bolso. Não hesitaram em anunciar valores eternos e absolutos nem em estabelecer códigos morais que deveriam ser respeitados por todos os homens.

Houve também uma longa série de criadores de utopias. Imaginavam paraísos terrestres onde só prevaleceria a razão pura. Não percebiam que aquilo que consideravam como razões finais ou como verdades manifestas eram tão somente fantasia de suas mentes. Consideravam-se infalíveis e, com toda tranquilidade, defendiam a intolerância e o uso da violência para oprimir dissidentes e heréticos. Preferiam a implantação de um regime ditatorial, ou para si mesmo, ou para aqueles que se dispusesse a executar fielmente os seus planos. Acreditavam que essa era a única forma de salvação para uma humanidade sofredora.

Houve Hegel. Certamente foi um pensador profundo; suas obras são um rico acervo de ideias estimulantes. Não obstante, escreveu sempre dominado pela ilusão de que Geist, o Absoluto, revelava-se por seu intermédio. Não havia nada no universo que não estivesse ao alcance da sabedoria de Hegel. Pena que sua linguagem fosse tão ambígua, a ponto de ensejar múltiplas interpretações. Os hegelianos de direita entenderam-na como um endosso ao sistema prussiano de governo autocrático, bem como aos dogmas da igreja prussiana. Os hegelianos de esquerda extraíram de suas teorias o ateísmo, o radicalismo revolucionário mais intransigente e doutrinas anarquistas.

Houve Augusto Comte. Pensava conhecer o futuro que estava reservado para a humanidade. E, portanto, considerava-se o supremo legislador. Pretendia proibir certos estudos astronômicos, por considerá-los inúteis. Planejava substituir o cristianismo por uma nova religião e chegou a escolher uma mulher para ocupar o lugar da Virgem. Comte pode ser desculpado, já que era louco, no sentido mesmo com que a patologia emprega este vocábulo. Mas como desculpar os seus seguidores?

Muitos outros exemplos deste tipo poderiam ser enumerados. Mas não podem ser usados como argumentos contra a razão, o racionalismo ou a racionalidade. Tais desvarios não têm nada a ver com o problema essencial que consiste em procurar saber se a razão é ou não o instrumento adequado e único de que dispõe o homem para obter tanto conhecimento quanto lhe seja possível. Aqueles que, honesta e conscienciosamente, procuram a verdade jamais pretenderam que a razão e a pesquisa científica possam responder a todas as questões.

Sempre tiveram plena consciência das limitações da mente humana. Não podem ser responsabilizados pela tosca filosofia de um Haeckel, nem pelo simplismo de diversas escolas materialistas.

Os filósofos racionalistas sempre estiveram preocupados em mostrar tanto os limites da teoria apriorística quanto os da investigação empírica. David Hume, o fundador da economia política inglesa, os utilitaristas e os pragmatistas americanos não podem ser acusados de haver superestimado a capacidade do homem para alcançar a verdade. Seria mais justificável acusar a filosofia dos últimos duzentos anos de um excesso de agnosticismo e de cepticismo do que de um excesso de confiança no que poderia ser alcançado pela mente humana.

A revolta contra a razão, atitude mental típica de nossa época, não se origina na falta de modéstia, cautela ou autocrítica por parte dos filósofos. Tampouco pode ser atribuída a falhas na evolução da moderna ciência natural. Ninguém pode ignorar as fantásticas conquistas da tecnologia e da terapêutica. É inútil atacar a ciência moderna, seja do ponto de vista do intuicionismo e do misticismo, seja de qualquer outro ângulo. A revolta contra a razão foi dirigida para outro alvo. Não tinham em mira as ciências naturais, e sim a economia. O ataque às ciências naturais foi uma consequência lógica e natural do ataque à economia. Seria inconcebível impugnar o uso da razão em um determinado campo do conhecimento, sem impugná-lo também nos demais.

Esta insólita reação teve sua origem na situação existente em meados do século XIX.

Os economistas já tinham, naquela época, demonstrado cabalmente que as utopias socialistas não passavam de ilusões fantasiosas. Entretanto, as deficiências da ciência econômica clássica os impediram de compreender por que qualquer plano socialista é irrealizável; mas eles já sabiam o suficiente para demonstrar a futilidade dos programas socialistas. As ideias comunistas já estavam derrotadas. Os socialistas não tinham como responder às devastadoras críticas que lhes eram feitas, nem como aduzir qualquer argumento novo em seu favor.Parecia que o socialismo estava liquidado, e para sempre.

Só havia um caminho para evitar a derrocada: atacar a lógica e a razão e substituir o raciocínio pela intuição mística. Estava reservado a Karl Marx o papel histórico de propor esta solução. Com base no misticismo dialético de Hegel, Marx, tranquilamente, arrogou-se a capacidade de predizer o futuro. Hegel pretendia saber que Geist, ao criar o universo, desejava instaurar a monarquia de Frederico Guilherme III. Mas Marx estava mais bem informado sobre os planos de Geist: havia descoberto que a evolução histórica nos conduziria, inevitavelmente, ao estabelecimento do milênio socialista. O socialismo estava fadado a acontecer "com a inexorabilidade de uma lei da natureza". E como, segundo Hegel, cada fase ulterior da história é melhor e superior do que a que a antecedeu, não cabia nenhuma dúvida de que o socialismo, a etapa final da evolução da humanidade, seria perfeito sob todos os aspectos. Assim sendo, resultava inútil a discussão dos detalhes do funcionamento de uma comunidade socialista. A história, no devido tempo, disporia todas as coisas da melhor maneira; e para isso não necessitava da ajuda dos homens, meros seres mortais.

Mas havia ainda um obstáculo principal a superar: a crítica devastadora dos economistas. Marx, entretanto, já tinha uma solução para superar este obstáculo. A razão humana, afirmava ele, por sua própria natureza, não tem condições de descobrir a verdade. A estrutura lógica da mente varia segundo as várias classes sociais. Não existe algo que se possa considerar como uma lógica universalmente válida. A mente humana só pode produzir "ideologias", ou seja, segundo a terminologia marxista, um conjunto de ideias destinadas a dissimular os interesses egoístas da classe social de quem as formula. Portanto, a mentalidade "burguesa" dos economistas é absolutamente incapaz de produzir algo que não seja uma apologia ao capitalismo. Os ensinamentos da ciência "burguesa", que são uma consequência da lógica "burguesa", não têm nenhuma validade para o proletariado, a nova classe social que abolirá todas as classes e transformará a Terra num paraíso.

Mas, evidentemente, a lógica da classe proletária não é apenas a lógica de uma classe. "As ideias que a lógica proletária engendra não são ideias partidárias, mas emanações da lógica mais pura e simples". Mas ainda, em virtude de algum privilégio especial, a lógica de certos burgueses não estava manchada pelo pecado original de sua condição burguesa. Karl Marx, o filho de um próspero advogado, casado com a filha de um nobre prussiano, e seu colaborador Frederick Engels, um rico fabricante de tecidos, se consideravam acima de suas próprias leis e, apesar da origem burguesa, se julgavam dotados da capacidade de descobrir a verdade absoluta.

Compete à história explicar as condições que fizeram com que essa doutrina tão primária se tornasse tão popular. A tarefa da economia é outra. Compete-lhe analisar o polilogismo marxista, bem como todos os demais tipos de polilogismo formados segundo o mesmo modelo, e demonstrar suas falácias e contradições.

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Para mais informações sobre o polilogismo marxista, acessem os links abaixo.

Polilogismo: Karl Marx e os Nazistas (Ludwig von Mises)

A falácia do polilogismo (Rodrigo Constantino)

Marxismo sem polilogismo - há algo aproveitável em Marx? (Jeffrey Tucker)

El Polilogismo (vídeo de Jesus Huerta de Soto)

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Os economistas e as leis antitruste

por William L. Anderson

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OBS.: O artigo abaixo foi publicado originalmente em maio de 2000. Há pouco mais de uma década, a Microsoft sofria uma série de ações judiciais movidas por governos e outras empresas, as quais acusavam a gigante da informática de práticas anticoncorrenciais. O texto expõe os erros contidos nas chamadas leis de defesa da concorrência (ou antitruste) e na própria concepção teórica que fundamenta essas leis. De forma indireta, também apresenta as diferentes abordagens que a Escola Austríaca e a Escola de Chicago têm sobre concorrência e propriedade privada. 
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O atual debate sobre o caso Microsoft tem causado (novamente) divisão entre os economistas, mesmo entre aqueles que se julgam economistas pró livre mercado.

De um lado do campo do livre mercado estão os Austríacos e seus seguidores, os quais acreditam que leis antitrustes não têm papel algum em nossa economia, portanto, devendo ser banidas dos livros.

Do outro lado, entretanto, estão os economistas da Escola de Chicago, que parecem estar divididos em suas opiniões a respeito da Microsoft, mas concordam que deve haver algum papel para a legislação antitruste no sentido de manter as firmas "honestas".

Então temos Robert Bork, autor do livro The Antitrust Paradox, um livro que discorda bastante do ponto de vista padrão pró-antitruste, agora sendo um porta-voz pago pela rival da Microsoft, Netscape. Desde então Bork tem endossado um velho estilo de “remédio” antitruste, pedindo a dissolução da combatida gigante do software. Outros economistas da Escola de Chicago não estão convencidos, apesar de parecerem manter a visão de regras antitruste como “último recurso”.

Consideremos Thomas Sowell, por exemplo, que recebeu seu doutorado em economia em Chicago e mais tarde ensinou na Universidade da Califórnia, ensino esse baseado num profundo programa orientado pelos princípios da escola de Chicago. Ele condenou reiteradamente a decisão da Microsoft e as tentativas do Departamento de Justiça para desmembrar a empresa.

No entanto, Sowell não condenou as várias leis antitrustes, as verdadeiras culpadas, apesar de ter chegado perto dessa reprovação em suas últimas colunas.

Existem boas razões para que os Austríacos se oponham as leis antitrustes. Não só elas são propositadamente vagas, mas representam uma agressão clara do governo sobre a propriedade privada. As leis antitrustes operam da mesma forma que as leis econômicas operaram durante a década de 30 na Itália fascista e na Alemanha : elas permitem uma nacionalização de facto da empresa  privada sem que o governo seja, de direito, o proprietário.

Ludwig von Mises e Murray Rothbard da Escola Austríaca apontaram de forma enfática que a propriedade privada é essencial para o funcionamento de uma economia. Como Mises observou em sua discussão sobre o socialismo, a propriedade privada (livre de governo) dos fatores de produção é necessária para a possibilidade do cálculo econômico. Sem esse cálculo, escreveu Mises, a economia cairia num caos, algo que foi eloqüentemente confirmado em diversos regimes socialistas na maior parte do século 20.

A propriedade privada como instituição necessária à eficiência econômica separa os Austríacos das outras escolas de pensamento, incluindo a Escola de Chicago. As outras facções defendem que a eficiência econômica é simplesmente uma questão de igualar preços ao  custo marginal. De acordo com suas doutrinas, qualquer empresa que cobra um preço diferente do custo marginal cria uma "falha de mercado” que não pode ser sanada pelo mercado. Assim, o governo deve intervir para corrigir essa aberração.

Os Austríacos, por outro lado, acreditam que tal noção é pura loucura. A idéia de que alguém no governo - ou mesmo na iniciativa privada - possa saber o "custo marginal” de uma firma particular, em qualquer estágio de produção, é um exercício de auto-ilusão, pois exigiria uma onisciência que ninguém possui.

Este abismo entre os Austríacos e as outras escolas do pensamento econômico é destacado por uma série de outras diferenças. Os Austríacos vêem a concorrência de mercado como um processo, enquanto outros vêem a concorrência como vários estados estáticos que vão desde a concorrência perfeita ao monopólio. O ponto de vista Neomarshalliano de concorrência sustenta que o estado natural das relações econômicas é um inevitável movimento da concorrência ao monopólio. Em outras palavras, a menos que o governo intervenha, há uma tendência de mercados competitivos, ao longo do tempo, saírem de estados de pura competição para estados em que as empresas possuam puros privilégios de monopólio.

Os Austríacos, no entanto,  adotam uma abordagem diferente. Eles constatam freqüentemente que nos estágios iniciais de produção, relativamente poucas empresas produzem bens e serviços. Como estas empresas ganham lucros econômicos, no entanto, os empresários tentam aproveitar novas oportunidades de lucro.

Como a produção continua e o mercado potencial para o bem ou serviço particular cresce, as empresas tendem a se fundir. Isso não é necessariamente um sinal de diminuição da concorrência, afirmam os Austríacos. Em vez disso, eles observam que a única maneira de uma empresa expandir as suas operações - sem a ajuda do governo - é produzir algo que agrada a um grande número de clientes, o que Mises chamou de "soberania do consumidor".

Portanto, os Austríacos vêem o crescimento da Standard Oil Company de John D. Rockefeller como sendo o resultado da capacidade da empresa em oferecer aos clientes um bom produto a um preço baixo, e não o contrário. Como os Austríacos e outros defensores de Rockefeller notaram, o crescimento da Standard Oil Company coincidiu com melhores serviços e preços mais baixos para os consumidores.

As diferenças entre os dois campos teóricos são fundamentais e mutuamente excludentes. Por um lado, os Austríacos não estão limitados pelos modelos  neomarshallianos suavizados , contínuos, com curvas de custo em forma de U, e que pressupõem que as empresas conhecem o custo marginal e a receita marginal de cada unidade produzida. Estes modelos, afirmam os Austríacos, no melhor caso são grosseiros e no pior, enganosos. Ao mesmo tempo em que esses modelos podem funcionar como boas ferramentas pedagógicas em sala de aula (e nos tribunais), eles são utilizados pelos governos  no controle das relações empresariais.

Na verdade, o uso destes modelos consolidou as  diferenças entre Mises e Oskar Lange no Debate do Cálculo Socialista de 1930. Lange afirmava que o governo poderia usar os modelos Neomarshallianos para definir preços e produção, já que os custos eram objetivamente obtidos e as informações necessárias para a tomada de decisão eram automaticamente incorporadas nas curvas de custo.

Mises argumentava que o raciocínio de Lange era ridículo. Não só os fatores de mercado não poderiam operar sem a instituição real da propriedade privada, como também não  haveria uma maneira das agências de planejamento socialista dirigirem as relações econômicas de um país usando modelos simples e grosseiros de sala de aula. Em 1939, Lange ganhou o elogio de seus pares, que o declararam "vencedor" do debate. Em 1990, a posição de Mises foi sustentada por eventos e fatos reais.

Compreender os limites dos modelos neoclássicos modernos é essencial para o entendimento do debate atual sobre a eficácia das leis antitruste e de "defesa da concorrência". Se o potencial explicativo desses modelos é fraco, então, atrelá-los a leis que usurpam a propriedade privada não é só contraproducente, mas também revela o verdadeiro sentido e utilidade das poderosas garras do governo. O fato de economistas terem feito milhões de dólares atestando casos antitruste (e usando seus modelos grosseiros como suporte) também nos diz que alguns membros desta profissão estão fazendo mais do que promover a "eficiência econômica" altruisticamente.

Os economistas Austríacos por mais de um século têm dado explicações precisas para os fenômenos econômicos que temos observado. No caso da Microsoft, eles não caíram na armadilha de olhar para as circunstâncias particulares para ver se  Bill Gates "infringiu a lei" ou não. Em vez disso, os Austríacos insistem que a legislação antitruste por si só é fatalmente falha. É hora de desafiar os paradigmas modernos neoclássicos sobre as quais repousam as leis antitrustes. Nas palavras de Mr. Bumble em Oliver Twist, de Charles Dickens, "Se essa é a lei meu senhor, então a lei é burra".

William L. Anderson é scholar adjunto do Mises Institute e ensina economia na Frostburg State University.

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Tradução de Tullio Bertini