domingo, 19 de junho de 2011

A Escola Austríaca de Economia, por Peter Boettke

O texto consiste num artigo de enciclopédia econômica.

Tradução de Rafael Hotz


A Escola Austríaca de Economia foi fundada em 1871 com a publicação do livro de Carl Menger, Princípios de Economia Política. Menger, conjuntamente com William Stanley Jevons e Leon Walras, desenvolveu a revolução marginalista na análise econômica. Menger dedicou Princípios de Economia Política a seu colega alemão William Roscher, figura proeminente da Escola Historicista Alemã, que dominava o pensamento econômico nos países de língua alemã. Em seu livro, Menger argumentou que a análise econômica é universalmente aplicável e que a unidade apropriada de análise é o homem e suas escolhas. Essas escolhas, escreveu, são determinadas por preferências individuais subjetivas e pela margem na qual essas decisões são tomadas (ver Marginalismo). A lógica da escolha, ele acreditava, era a ferramenta essencial para o desenvolvimento de uma teoria econômica universalmente válida.

A escola histórica, por outro lado, dizia que a ciência econômica é incapaz de gerar princípios universais e que a pesquisa científica deveria ao invés ser focada em exame histórico detalhado. A escola histórica achava que os economistas ingleses clássicos estavam errados em acreditarem em leis econômicas que transcendem o tempo e fronteiras nacionais. Os Princípios de Economia Política de Menger restauraram a visão clássica da economia política de leis universais e o fizeram se utilizando de análise marginal. Os estudantes de Roscher, especialmente Gustav Schmoller, fizeram grandes ressalvas à defesa de Menger da “teoria” e deram ao trabalho de Menger e seus seguidores, Eugen Böhm-Bawerk e Friedrich Wieser, o nome depreciativo de “Escola Austríaca”, graças a suas posições de docentes na Universidade de Viena. O termo pegou.

Desde os anos 30, nenhum economista da Universidade de Viena ou qualquer outra universidade austríaca se tornou figura proeminente da então chamada Escola Austríaca de economia. Nos anos 30 e 40, a Escola Austríaca se mudou para a Inglaterra e EUA, e os acadêmicos associados a essa abordagem da ciência econômica estavam primariamente localizados na London School of Economics (31-50), New York University (44-?), Auburn University (83-?) e George Mason University (81-?). Muitas das idéias dos principais economistas austríacos de meados do século XX, tais como Ludwig von Mises e F.A. Hayek, tem raízes nas idéias de economistas clássicos como Adam Smith e David Hume, ou figuras do início do século XX como Knut Wicksell, bem como Menger, Böhm-Bawerk e Friedrich von Wieser. Essa mistura diversa de tradições intelectuais da ciência econômica é ainda mais óbvia em economistas austríacos contemporâneos, que foram influenciados por figuras modernas na economia. Estas incluem Armen Alchian, James Buchanan, Ronald Coase, Harold Demsetz, Axel Leijonhufvud, Douglass North, Mancur Olson, Vernon Smith, Gordon Tullock, Leland Yeager e Oliver Williamson, bem como Israel Kirzner e Murray Rothbard. Enquanto se poderia argumentar que uma Escola Austríaca única opera em meio a profissão econômica hoje em dia, também poderia se argumentar sensivelmente que o rótulo “Austríaco” não possui mais um significado substantivo. Nesse artigo eu me concentro nas proposições principais sobre economia que os chamados Austríacos acreditam.

A Ciência Econômica

Proposição 1: Apenas indivíduos escolhem.

O homem, com seus propósitos e planos, é o ponto de partida de toda análise econômica. Apenas indivíduos escolhem; entidades coletivas não escolhem. A tarefa primária da análise econômica é tornar os fenômenos econômicos inteligíveis ao baseá-los em propósitos individuais e planos; a tarefa secundária da análise econômica é buscar as conseqüências não intencionais das escolhas individuais.

Proposição 2: O estudo da ordem de mercado é fundamentalmente sobre o comportamento de troca e as instituições em meio as quais essas trocas ocorrem.

O sistema de preços e a economia de mercado são mais bem compreendidas como uma “cataláxia”, e dessa forma a ciência que estuda a ordem de mercado cai sobre o domínio da “cataláxia”. Esses termos são derivados dos significados originais gregos da palavra “katallaxy” – trocar e trazer um estranho para seu lado através da troca. A cataláxia foca atenção analítica nas relações de troca que emergem no mercado, na barganha que caracteriza o processo de troca, e nas instituições nas quais essas trocas ocorrem.

Proposição 3: Os “fatos” das ciências sociais são aquilo que as pessoas acreditam e pensam.

Diferente das ciências físicas, as ciências humanas começam com propósitos e planos de indivíduos. Se nas ciências físicas o expurgo de propósitos e planos levou a avanços ao superar o problema do antropomorfismo, nas ciências humanas, a eliminação de propósitos e planos resulta em expurgar a ciência da ação humana de seu assunto principal. Nas ciências humanas, os “fatos” do mundo são aquilo que os agentes acreditam e pensam.

O significado que os indivíduos atribuem às coisas, práticas, locais e pessoas determina como eles se orientarão em tomar decisões. A meta das ciências da ação humana é inteligibilidade, e não previsão. As ciências humanas podem atingir seu objetivo porque nós somos aquilo que estamos estudando, ou porque possuímos conhecimento de dentro, ao passo que as ciências naturais não podem perseguir uma meta de inteligibilidade porque elas dependem de conhecimento externo. Nós podemos entender propósitos e planos de outros agentes humanos porque nós mesmos somos atores humanos.

A experiência clássica de pensamento usada para transmitir essa diferença essencial entre as ciências da ação humana e as ciências físicas era um marciano observando os “dados” na Grand Central Station em Nova Iorque. Nosso marciano poderia observar que quando a mãozinha do relógio aponta para o oito, há um tumulto de movimentação conforme os corpos deixam aquelas caixas, e que quando a mãozinha chega ao cinco, há um tumulto de movimentação conforme os corpos reentram nas caixas e vão embora. O marciano pode até desenvolver uma previsão sobre a mãozinha e o movimento dos corpos e das caixas. Mas a menos que o marciano venha a compreender os propósitos e planos (a comutação de ida e volta do trabalho), seu entendimento “científico” dos dados da Grand Central Station será limitado. As ciências da ação humana são diferentes das ciências naturais, e empobrecemos as ciências humanas quando tentamos encaixa-las no molde filosófico/científico das ciências naturais.

Microeconomia

Proposição 4: Utilidade e custos são subjetivos.

Todo fenômeno econômico é filtrado pela mente humana. Desde 1870, os economistas concordaram que valor é subjetivo, mas, ao seguirem Alfred Marshall, muitos argumentaram que o lado dos custos da equação é determinado por condições objetivas. Marshall insistia que assim como ambas as lâminas de uma tesoura cortam um pedaço de papel, também o valor subjetivo e custos objetivos determinavam preços (ver microeconomia). Mas Marshall falhou em apreciar que custos também são subjetivos porque eles mesmos são determinados pelos valores dos usos alternativos de recursos escassos. Ambas as lâminas da tesoura de fato cortam o papel, mas a lâmina da oferta é determinada pelas valorações subjetivas dos indivíduos.

Ao decidir sobre cursos de ação, deve-se escolher; ou seja, deve-se seguir um caminho e não outros. O foco nas alternativas de escolhas leva a um dos conceitos definidores da maneira econômica de pensar: custos de oportunidade. O custo de qualquer ação é o valor da alternativa abdicada mais valorizada ao agir daquela forma. Uma vez que a ação abdicada é por definição nunca realizada, quando se decide, se compara os benefícios esperados de uma atividade com os benefícios esperados de atividades alternativas.

Proposição 5: O sistema de preços economiza a informação que as pessoas necessitam saber para proceder com suas decisões.

Preços sumarizam os termos de troca no mercado. O sistema de preços sinaliza aos participantes do mercado a informação relevante, ajudando-os a realizar ganhos mútuos a partir das trocas. No famoso exemplo de Hayek, quando as pessoas percebem que o preço do estanho aumentou, elas não precisam saber se a causa foi um aumento na demanda por estanho ou um decréscimo na oferta. De qualquer forma, o aumento no preço do estanho as leva a economizar em seu uso. Os preços de mercado mudam rapidamente quando as condições sustentadoras mudam, o que leva as pessoas a se ajustarem rapidamente.

Proposição 6: A propriedade privada dos meios de produção é uma condição necessária para o cálculo econômico racional.

Economistas e cientistas sociais há muito já reconheceram que a propriedade privada provém incentivos poderosos para a alocação eficiente de recursos escassos. Mas aqueles simpáticos ao socialismo acreditavam que este poderia transcender esses problemas de incentivos ao mudar a natureza humana. Ludwig von Mises demonstrou que mesmo se supusermos que uma mudança na natureza humana ocorresse, o socialismo ainda sim falharia graças a incapacidade dos planejadores econômicos de calcular o uso alternativo dos recursos. Sem propriedade privada nos meios de produção, raciocinou Mises, não haveria mercado para os meios de produção, e logo então não haveria preços monetários refletindo a escassez relativa dos meios de produção. E sem preços monetários refletindo a escassez relativa dos meios de produção, os planejadores econômicos seriam incapazes de calcular racionalmente o uso alternativo dos meios de produção.

Proposição 7: O mercado competitivo é um processo de descoberta empresarial.

Muitos economistas enxergam a competição como um estado de coisas. Mas o termo “competição” implica uma atividade. Se competição fosse um estado de coisas, o empreendedor não teria função. Mas como a competição é uma atividade, o empreendedor tem um grande papel como agente da mudança que empurra e puxa o mercado para novas direções.

O empreendedor é alerta para oportunidades não reconhecidas para ganho mútuo. Ao reconhecer oportunidades, o empreendedor obtém um lucro. O aprendizado mútuo da descoberta de ganhos através da troca impulsiona o sistema de mercado em direção a uma alocação mais eficiente de recursos. A descoberta empresarial garante que um livre mercado caminha em direção ao uso mais eficiente dos recursos. Além disso, a atração do lucro continuamente instiga os empreendedores a procurarem inovações que aumentem a capacidade empresarial. Para o empreendedor que reconhece a oportunidade, as imperfeições de hoje representam os lucros de amanhã [1]. O sistema de preços e a economia de mercado são artifícios de aprendizado que guiam os indivíduos para descobrir ganhos mútuos e usar recursos escassos eficientemente.

Macroeconomia

Proposição 8: Não neutralidade da moeda.

O dinheiro é definido como o meio de troca mais comumente aceito. Se a política governamental distorce a unidade monetária, a troca também é distorcida. A meta da política monetária deveria ser minimizar essas distorções. Qualquer aumento na oferta monetária não contrabalanceada por um aumento na demanda por moeda irá levar a um aumento de preços. Mas os preços não se ajustam instantaneamente pela economia. Alguns ajustes ocorrem mais rápido que outros, o que significa que os preços relativos mudam. Cada uma dessas mudanças exerce sua influencia no padrão de trocas e produção. O dinheiro, assim, por sua própria natureza, não pode ser neutro.

A importância dessa proposição se torna evidente ao discutir os custos da inflação. A teoria quantitativa da moeda postulava, corretamente, que imprimir dinheiro não aumenta a riqueza. Assim, se o governo duplica a oferta monetária, os ganhos aparentes dos os donos do dinheiro em capacidade de comprar bens são prevenidos pela duplicação de preços. Mas enquanto a teoria quantitativa da moeda representava um avanço importante no pensamento econômico, uma interpretação mecânica da teoria subestimava os custos da política inflacionária. Se os preços simplesmente dobrassem quando o governo duplicasse a oferta monetária, então os agentes econômicos antecipariam esse ajuste de preços ao seguirem de perto dados de oferta monetária e ajustariam seu comportamento correspondentemente. O custo da inflação seria assim mínimo.

Mas a inflação é socialmente destrutiva em diversos níveis. Primeiro, mesmo inflação antecipada rompe a confiança básica entre o governo e seus cidadãos porque o governo está se utilizando de inflação para confiscar a riqueza das pessoas. Segundo, inflação não antecipada é redistributiva, pois os devedores ganham à custa dos credores. Terceiro, uma vez que as pessoas não conseguem antecipar perfeitamente a inflação e porque o dinheiro é somado em algum lugar do sistema – digamos, através da compra governamental de títulos – alguns preços (preços dos títulos, por exemplo) se ajustam antes de outros preços, o que significa que a inflação distorce o padrão de troca e produção.

Já que o dinheiro é a conexão para quase todas as transações numa economia moderna, distorções monetárias afetam essas transações. A meta da política monetária, logo, deveria ser minimizar essas distorções monetárias, precisamente porque a moeda é não neutra [2].

Proposição 9: A estrutura de capital consiste em bens heterogêneos que possuem usos não específicos que precisam ser alinhados.

Agora mesmo, pessoas em Detroit, Stuttgart e Tóquio estão fabricando carros que não serão comprados antes de uma década. Como elas fazem para alocar recursos e cumprir seu objetivo? A produção é sempre para uma demanda futura incerta, e o processo de produção requer diferentes estágios de investimento desde os mais remotos (extração de minério de ferro) até os mais imediatos (a venda final do carro). Os valores de todos os bens de produção em cada estágio de produção derivam seu valor do valor que os consumidores conferem ao produto sendo produzido. O plano de produção alinha vários bens numa estrutura de capital que produz bens finais e, idealmente, da maneira mais eficiente. Se bens de capital fossem homogêneos, eles poderiam ser usados para produzir todos os bens de consumo finais que os consumidores desejam. Se erros fossem cometidos, os recursos seriam realocados rapidamente e a custo mínimo, para produzir o produto final mais desejado. Mas bens de capital são heterogêneos e multiespecíficos; uma fábrica de carros pode fabricar carros, mas não pode fabricar chips de computador. O alinhamento intricado do capital para produzir diversos bens de consumo é governado pelos sinais de preços e pelo cuidadoso cálculo econômico dos investidores. Se o sistema de preços é distorcido, os investidores cometerão erros ao alinhar seus bens de capital. Uma vez que o erro é revelado, os agentes econômicos irão refazer seus investimentos, mas no ínterim recursos serão perdidos [3].

Proposição 10: Instituições Sociais são normalmente o resultado da ação humana, mas não do propósito humano.

A maioria das instituições e práticas mais importantes não é o resultado do propósito direto, mas é o co-produto de ações tomadas para atingir outros objetivos. Um estudante no meio-oeste em janeiro tentando chegar à classe rapidamente enquanto evita o frio poderá cortar caminho pelo jardim ao invés de caminhar pela calçada. Cortar caminho pelo jardim na neve deixa pegadas; conforme outros estudantes as seguem, eles poderão aumentar a trilha. Apesar de sua meta ser meramente chegar à sala mais rápido e evitar o tempo frio, no processo eles criam um caminho na neve que acaba por ajudar os estudantes que chegam depois em atingir sua meta mais facilmente. A história da “trilha na neve” é um exemplo simples de um “produto da ação humana, mas não do propósito humano” (Hayek, 1948, p.7).

A economia de mercado e seu sistema de preços são exemplos de um processo similar. As pessoas não tencionam criar o conjunto complexo de trocas e sinais de preços que constituem uma economia de mercado. Sua intenção é apenas melhorar sua vida, mas seu comportamento resulta no sistema de mercado. O dinheiro, a lei, a linguagem, a ciência e outros são todos fenômenos sociais que podem ter suas origens demonstradas não pelo propósito humano, mas ao invés, por pessoas tentando atingir sua própria melhoria, e nesse processo produzindo um resultado que beneficie o público.

As implicações dessas dez proposições são um tanto quanto radicais. Se elas se mantiverem verdadeiras, a teoria econômica seria baseada em lógica verbal e trabalho empírico focado em narrativas históricas. No que toca políticas públicas, fortes dúvidas seriam levantadas sobre a capacidade dos oficiais governamentais de intervirem de maneira ótima sobre o sistema econômico, deixado sozinho para gerenciar racionalmente a economia.

Talvez os economistas devessem adotar o credo dos médicos: “Primeiro não cause danos”. A economia de mercado se desenvolve a partir da inclinação natural das pessoas em melhorar sua situação e, ao fazê-lo, descobrirem as trocas mutuamente benéficas que cumprirão esse papel. Adam Smith sistematizou primeiramente essa mensagem na Riqueza das Nações. No século XX, economistas da Escola Austríaca de economia foram os defensores mais inflexíveis dessa mensagem, não graças a seu cometimento ideológico anterior, mas graças à lógica de seus argumentos.

Sobre o Autor: Peter J. Boettke é professor de economia na George Mason University, aonde ele também é vice-diretor do James M. Buchanan Center for Political Economy e um veterano no Mercatus Center. Ele é o editor do Rewiew of Austrian Economics.

Notas do Autor

[1] Empreendedorismo pode ser caracterizado por três momentos distintos: capacidade de fazer descobertas ao acaso, busca (deliberação consciente) e aproveitar a oportunidade para lucros.

[2] A busca por soluções para esse objetivo elusivo gerou alguns dos trabalhos mais inovadores de economistas Austríacos e levou ao desenvolvimento nos anos 70 e 80 à literatura de free-banking de F.A. Hayek, Lawrence White, George Selgin, Kevin Dowd, Kurt Schuler, e Steven Horwitz.

[3] As proposições 8 e 9 formam o núcleo da teoria austríaca dos ciclos de negócio, que explicam como a expansão do crédito por parte do governo gera um mal investimento na estrutura de capital durante o período do boom e que deve ser corrigido na fase de recessão. Na economia contemporânea, Roger Garrison é o expositor líder dessa teoria.

[4] Nem toda ordem espontânea é benféfica, e, assim, essa proposição não deve ser lida como um exemplo da falácia Panglossiana. Se indivíduos perseguindo seu próprio interesse geram benefícios públicos depende das condições instituicionais nas quais eles perseguem seus interesses. Tanto a mão invisível da eficiência do mercado quanto à tragédia dos comuns são resultados de indivíduos tentando buscar seus interesses individuais; mas em um arranjo social isso gera benefícios sociais, ao passo que em outro ele gera perdas. A nova economia institucional tem focado atenção novamente em como resultados sociais sensitivos estão relacionados com o quadro institucional em que os indivíduos interagem. É importante, entretanto, perceber que todos os economistas políticos clássicos e os primeiros economistas neoclássicos reconheciam o argumento básico dos novos economistas institucionais, e que era apenas a fascinação da metade do século XX em provas formais do equilíbrio competitivo geral, de um lado, e a preocupação Keynesiana com variáveis agregadas, de outro, que tendiam a escurecer as precondições institucionais requeridas para a cooperação social.

Nenhum comentário:

Postar um comentário