por Ludwig von Mises (extraído de "Liberalismo Segundo a Tradição Clássica")
Em nenhum ponto fica mais claro e mais fácil demonstrar a diferença entre o raciocínio do velho liberalismo e o do neoliberalismo do que no tratamento do problema da igualdade. Os liberais do século XVIII, guiados pelas ideias da lei natural e do iluminismo, exigiam para todos a igualdade nos direitos políticos e civis, porque pressupunham serem iguais todos os homens. Deus fez todos os homens iguais, dotando-os, fundamentalmente, das mesmas capacidades e talentos, soprando-lhes o sopro de seu Espírito. Todas as diferenças existentes entre os homens são apenas artificiais, produto das instituições sociais e humanas, isto é, transitórias. O que é imperecível no homem — seu espírito — sem dúvida é o mesmo no rico e no pobre, no nobre e no plebeu, no branco e no preto.
No entanto, nada mais infundada do que a afirmação da suposta igualdade de todos os membros da raça humana. Os homens são totalmente desiguais. Mesmo entre irmãos, há diferenças das mais marcantes, quer nos atributos físicos, quer nos mentais. A natureza nunca se repete em sua criação; não produz nada às dúzias, nem são padronizados os seus produtos. Cada homem que nasce de sua fábrica traz consigo a marca do indivíduo, único e irrepetível. Os homens não são iguais e a exigência da igualdade por lei não pode, de modo algum, basear-se na alegação de que tratamento igual é devido a iguais.
Há duas razões distintas pelas quais todos os homens devem receber tratamento igual perante a lei. Uma delas já mencionamos, quando analisamos as objeções à servidão involuntária. Para que o trabalho humano obtenha a mais alta produtividade possível, o trabalhador deve ser livre, porque só o trabalhador livre, que goza, na forma de salários, os frutos do seu próprio trabalho, se exercitará ao máximo. O segundo ponto, em favor da igualdade de todos os homens perante a lei, trata da manutenção da paz social. Já dissemos que qualquer perturbação do desenvolvimento pacífico da divisão do trabalho deve ser evitado; porém, é quase impossível preservar uma paz duradoura numa sociedade em que são diferentes os direitos e deveres das respectivas classes. Quem negar direitos a uma parte da população deve estar sempre preparado para um ataque coeso, vindo dos destituídos daquele privilégio. Os privilégios de classe devem desaparecer, para que cessem os conflitos por eles causados.
É, por conseguinte, bastante injustificável arguir de imperfeição a maneira pela qual o liberalismo defende o postulado da igualdade, baseando-se em que o liberalismo tenha criado apenas a igualdade perante a lei, e não a igualdade real. Todo poder humano seria incapaz de tornar os homens realmente iguais. Os homens são e permanecerão sempre desiguais. São considerações sensatas e úteis, tais como as que aqui apresentamos, que constituem o argumento em favor da igualdade de todos os homens perante a lei. O liberalismo nunca almejou algo além disso, nem exigiu mais que isso. Está além da capacidade humana tornar o negro num branco. Mas aos negros podem ser garantidos os mesmos direitos do branco, e daí pode ser-lhes oferecida a possibilidade do mesmo ganho, se produzirem a mesma quantidade.
Mas, dizem os socialistas, não basta tornar os homens iguais perante a lei. Para torná-los realmente iguais, é necessário provê-los da mesma renda. Não basta abolir os privilégios de nascença e de posição. É preciso acabar com o maior e o mais importante de todos os privilégios, a saber, o que é propiciado pela propriedade privada. Só então o programa liberal estará completamente realizado e um liberalismo coerente desembocará, portanto, em última análise, no socialismo, na abolição da propriedade privada dos meios de produção.
O privilégio é um arranjo institucional que favorece alguns indivíduos ou a um certo grupo, à custa dos demais. O privilégio existe, embora prejudique a alguns, talvez à maioria, e não beneficia a ninguém, a não ser àqueles, para os quais foi criado. Na ordem feudal da Idade Média, certos senhores possuíam o direito hereditário da magistratura judicial. Eram juízes por terem herdado a posição, mesmo que não possuíssem capacidade nem qualidades de caráter apropriadas a um juiz. A seus olhos, tal ofício nada mais representava do que uma lucrativa fonte de renda. No caso, a magistratura era privilégio de uma classe de berço nobre.
No entanto, se os juízes, nos Estados modernos, são sempre escolhidos num círculo de pessoas que possuem conhecimentos e experiência em leis, isto não constitui um privilégio dos advogados. A preferência é dada aos advogados, não para o seu próprio bem, mas em favor do bem-estar público, porque as pessoas, em geral, manifestam a opinião de que o conhecimento de jurisprudência é pré-requisito indispensável para a magistratura. A controvérsia sobre o fato de um certo arranjo institucional dever ou não ser considerado um privilégio de certo grupo, classe ou pessoa não deve ser decidida pelas vantagens ou não que traz a esse grupo, classe ou pessoa, mas pelos benefícios que traz ao público em geral. O fato de que, em um navio que esteja singrando os mares, um homem seja o capitão e os demais constituam a tripulação, e, portanto, estejam sob seu comando, sem dúvida, é uma vantagem para o capitão. Não obstante, não constitui privilégio do capitão, se ele possui a capacidade de dirigir o navio entre recifes numa tempestade, e, por isso, de estar a serviço não apenas de si mesmo, mas de toda a tripulação.
Para se determinar se um arranjo institucional deva ser considerado como privilégio especial de um indivíduo ou de uma classe, a pergunta a se fazer não é se o privilégio beneficia este ou aquele indivíduo, ou esta ou aquela classe, mas se é benéfico ao público de um modo geral. Se chegarmos à conclusão de que apenas a propriedade privada dos meios de produção torna possível a prosperidade da sociedade humana, é claro que isso equivale a dizer que a propriedade privada não constitui privilégio de seu proprietário, mas uma instituição social para o bem de todos, muito embora possa, ao mesmo tempo, ser especialmente agradável e vantajosa para alguns.
Não é em nome dos proprietários que o liberalismo propõe a preservação da instituição da propriedade privada. Não é porque a abolição desta instituição violaria o direito de propriedade que os liberais desejam preservá-la. Se achassem que sua abolição fosse de interesse geral, os liberais lutariam por sua abolição, não importa o quão prejudicial isso pudesse ser aos interesses dos proprietários. Entretanto, a preservação desta instituição é do interesse de todos os estratos da sociedade. Mesmo os pobres, que nada possuem de si próprios, vivem incomparavelmente melhor, em nossa sociedade, do que viveriam em uma sociedade que não fosse capaz de produzir nem mesmo uma parte do que se produz hoje.
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