quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Escola Austríaca de Economia segundo Ubiratan Iorio


por Ubiratan Jorge Iorio (extraído do livro Ação, Tempo e Conhecimento)

A economia da Escola Austríaca, assim como a epistemologia e a filosofia política, também deriva do que denominamos de tríade básica — ação, tempo e conhecimento — e se propaga por meio dos conceitos de utilidade marginal, subjetivismo e ordens espontâneas, que são os seus elementos de propagação.

Com base no núcleo seminal e nesses elementos propagadores, os economistas austríacos, desde os primórdios com Menger, erigiram uma obra extraordinariamente rica sob o ponto de vista científico, mas que funciona perfeitamente — evidentemente, naquilo que se pode chamar de "perfeição" em uma ciência social — quando tenta explicar o mundo real.

Vejamos resumidamente cada um dos seis campos da teoria econômica que consideramos essenciais para a compreensão do pensamento austríaco.

(a) processo de mercado

A Escola Austríaca não estuda, ao contrário da mainstream economics, mercados em estado de equilíbrio.  Nem tampouco utiliza a famosa classificação dos mercados segundo as suas "formas" (concorrência perfeita, oligopólio, concorrência monopolista e monopólio).  Ela trabalha com a hipótese de que os mercados são processos que tendem ao equilíbrio (porque os agentes são racionais e aprendem com os erros), mas que, em cada momento distinto do tempo dinâmico, não estão em suas "posições" de equilíbrio.

Para entender isto, basta mencionarmos os principais elementos da teoria.  Em primeiro lugar, os mercados são movimentados pela ação humana de seus participantes, tanto no lado da demanda quanto no da oferta.  Em segundo lugar, a ação humana se dá ao longo do tempo dinâmico, em que cada instante é uma oportunidade de aprendizado.  Terceiro, as transações nos mercados se realizam sob condições de limitação e de dispersão do conhecimento.  Quarto, os mercados são ordens espontâneas, sujeitando-se, portanto, a permanentes mutações.  Quinto, a ação humana é subjetiva.

Como esperar, então, que o mundo real possa apresentar mercados em "equilíbrio"? Este é um dos principais pontos da teoria austríaca.  Os mercados são processos de erros e tentativas, um permanente procedimento de descobertas de novas oportunidades, com uma dinâmica que não dá espaço para o equilíbrio.

(b) função empresarial

A função empresarial é a capacidade individual subjetiva de perceber as possibilidades de ganhos existentes nos mercados.  Portanto, ela nada mais é do que uma categoria de ação.  Sendo assim, a ação humana pode ser considerada como um fenômeno empresarial, mais especificamente aquela que realça as capacidades perceptiva, criativa e de coordenação do agente.

Como em qualquer ação humana, a ação empresarial acontece em ambiente de incerteza genuína, dadas as limitações de nosso conhecimento.  Requer, por sua vez, criatividade e desprendimento, já que o futuro é incerto e uma ação empreendedora tanto pode dar bons resultados como maus resultados.  A ação empresarial é um conjunto de escolhas ao longo do tempo em ambiente de incerteza e, como tal, implica em um conjunto de outras ações alternativas a que se deve forçosamente renunciar e o custo é o valor subjetivo dessas ações a que se renuncia.

Como os meios sempre são escassos face aos fins, os agentes buscam primeiro os fins aos quais dão maior valor e apenas depois os demais, relativamente menos importantes.  Cada ação é motivada pela crença subjetiva de que os fins escolhidos possuem um valor maior do que o valor dos custos da escolha de uma ação e a diferença entre ambos é o lucro, o elemento que explica a ação.

Para a Escola Austríaca toda ação embute um componente empresarial puro e criativo em sua essência, que não requer qualquer custo e que é exatamente o que permite aproximar o conceito de ação do conceito de função empresarial.

(c) debate sobre o cálculo econômico

Mises, ainda nos anos 20 do século passado, percebeu claramente que o sistema socialista impossibilita o cálculo econômico.  Seu argumento era simples: o cálculo econômico requer que os planejadores conheçam os preços; estes, por sua vez, para que possam ser considerados como preços de fato (e não pseudo-preços) pressupõem a existência do processo de mercado, em que as ações de demandantes e ofertantes possam fluir normalmente; e os mercados, para que possam existir, requerem a propriedade privada.  Ora, o socialismo não contempla a propriedade privada; portanto, não faz sentido falar em mercados em num sistema socialista; se não há mercados efetivos, não pode haver preços e, não havendo preços, o cálculo econômico torna-se impossível.  Por essa razão, Mises afirmava categoricamente, em seu debate com os economistas socialistas, que o sistema que defendiam guiava-se às cegas e estava, portanto, fadado ao fracasso, pela desorganização social e econômica que embute.  A história comprovou — e ainda está comprovando — que Mises estava certo.

Os órgãos centrais nesses sistemas são formados por pessoas, e não é razoável admitir que por melhores e mais "puras" sejam suas intenções, possuam o dom da onisciência, que lhes permita conhecer e interpretar os conjuntos dispersos de informações individuais, que estão se alterando e renovando ininterruptamente ao longo do tempo.

Os planejadores nem conseguem saber qual o seu o grau de ignorância sobre as informações necessárias para promover o cálculo correto e a consequente coordenação.  E quanto maior o grau de coerção imposto, menores são as possibilidades de realização dos planos, porque a maior repressão tende a aumentar a ausência de coordenação, provocando distorções nos mercados que são progressivamente crescentes com o tempo.

(d) teoria monetária

Os pontos principais da Escola Austríaca a respeito da teoria monetária podem ser resumidos em cino: o primeiro é que os efeitos das variações do estoque de moeda afetam desigualmente os preços relativos, a estrutura de capital, os padrões de produção da economia e alteram os níveis de emprego dos fatores de produção.  Já em 1912, em sua obra monumental Teoria da Moeda e do Crédito, Mises chamava a atenção para o fato de que aumentos na oferta de moeda não produzem benefícios para a sociedade, porque eles não possuem capacidade de alterar os serviços de troca proporcionados pela moeda, apenas reduzem o poder de compra de cada unidade monetária.

O segundo é que os ciclos econômicos são fenômenos que, embora se manifestem no chamado setor real da economia, têm causas exclusivamente monetárias.

O terceiro é que a moeda, como qualquer outro bem, tem o seu valor decretado pelo princípio da utilidade marginal, como demonstrou Mises naquela obra, ao resolver o então denominado problema da circularidade austríaco, com o seu famoso teorema da regressão, como veremos no capítulo dedicado à teoria monetária da Escola Austríaca.

E o quarto é que os austríacos definem a inflação não como um simples "aumento contínuo e generalizados de preços", uma vez que essa, na verdade, é a manifestação da inflação; eles a definem como uma queda permanente no poder de compra da moeda, provocada, em última instância, pela emissão de moeda e pela consequente diminuição de sua utilidade marginal.

O último ponto é que a moeda, vale dizer, o sistema monetário, é uma ordem espontânea, um fenômeno que passa permanentemente por evoluções que são resultantes da ação humana, mas não de qualquer planejamento.

(e) teoria do capital

A teoria do capital austríaca, sem dúvida, é um elemento que diferencia essa escola de pensamento de todas as demais, pelo simples fato de que estas não possuem algo que se possa denominar de teoria do capital.

Quem mais contribuiu para uma concepção austríaca do capital foi, sem dúvida, Böhm-Bawerk, que seguiu a tradição iniciada por Menger.  Mises, Hayek e outros austríacos trabalharam fortemente para o seu desenvolvimento.

Seu ponto central é o conceito de estrutura de capital ou estrutura de produção, que considera que um bem, desde que começa a ser produzido até ficar acabado na forma de um bem final, passa por várias etapas no processo produtivo.  Esses diversos estágios correspondem à estrutura de capital da economia.  Portanto, o capital não é homogêneo e muto menos constante, como os modelos macroeconômicos o consideram.  Ele é essencialmente heterogêneo e varia com os demais fatores de produção ao longo do tempo.

A heterogeneidade dos bens de capital e o fato de que as economias possuem estruturas de capital levam, entre outras hipóteses (como a do individualoismo metodológico) os economistas austríacos à rejeição da análise macroeconômica.

(f) teoria dos ciclos econômicos

A ABCT (Austrian Business Cycles Theory) foi desenhada por Mises em seu tratado de 1912, posteriormente desenvolvida por Hayek nos anos 30 e depois aperfeiçoada por outros economistas da tradição de Menger, dos quais o mais criativo é o americano Roger Garrison.

É, ao mesmo tempo, uma teoria da moeda, do capital e dos ciclos econômicos.  Mostra como a emissão de moeda produz o efeito de diminuir a taxa de juros e, inicialmente, enganar os agentes — que, acreditando que se trata de maior poupança, embarcam em investimentos de maturação mais longa, alargando, assim, a estrutura de capital da economia.  Posteriormente, quando esses agentes descobrem que na realidade não se tratava de poupança, mas de moeda "fantasiada" de poupança, a taxa de juros sobe e isso leva a um encolhimento da estrutura de produção, fenômeno que produz desemprego (e que ficou conhecido como efeito concertina ou efeito sanfona), que é maior nos setores mais afastados da produção de bens finais, que foram exatamente aqueles setores inicialmente beneficiados pela expansão monetária.

 Assim, a inflação — ou seja, aquela quantidade adicional de moeda que entrou na economia sem lastro — acabará provocando o desemprego de fatores de produção.  Como disse Hayek, não há escolha entre comer demais (emitir moeda sem lastro real) e ter indigestão (recessão), porque ambas são inseparáveis, a primeira acarretando a segunda.  Essa conclusão — de que o desemprego é a causa natural da inflação — mostra quão equivocadas são as análises keynesianas que ficaram conhecidas como a curva de Phillips, que postulavam a existência de um trade off ou dilema entre inflação e desemprego, de modo que, se algum governo desejasse combater a inflação, teria que aceitar uma taxa de desemprego de mão de obra maior ou, se quisesse reduzir o desemprego, seria forçado a aceitar uma taxa de inflação mais elevada.

Conclusões

Procuramos neste capítulo resumir a multiplicidade de fatores cujo conjunto constitui a Escola Austríaca de Economia, mostrando a importância de cada um deles na construção do edifício e também como se integram entre si.

Ao núcleo seminal ou tríade básica, formada pelo conceito de ação humana, pela concepção dinâmica do tempo e pelo reconhecimento de que o conhecimento possui limitações, acrescentou-se o que se pode denominar de elementos de propagação, a saber, a doutrina da utilidade marginal, o subjetivismo e o conceito de ordens espontâneas.  É interessante para o leitor parar neste ponto e fazer o exercício de certificar-se de que cada um desses três últimos elementos decorre dos três primeiros, em maior ou menor intensidade, o que permite que sejam denominados de propagadores.

De posse desse aparato, mostramos suas implicações nos campos da filosofia política, da epistemologia e da economia.

Ação, tempo e conhecimento: eis o universo fascinante da Escola Austríaca de Economia!

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Ubiratan Jorge Iorio é economista e professor de UERJ.  Visite seu website.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A função social do dinheiro


por Alceu Garcia (publicado originalmente em abril de 2002)

Introdução

O dinheiro é parte importante de nossas preocupações e afazeres cotidianos. No dia-a-dia de cada um, porém, o "vil metal" é apenas mais um dado de realidade; sua natureza última e funções sociais não despertam nenhum interesse. As pessoas contentam-se em conseguir o din-din para pagar suas contas e está muito bom assim. O estudo da moeda em si, assunto mortalmente entendiante para quase todo mundo, é deixado para os especialistas. E é aí onde mora o perigo. Se os especialistas adotam teorias errôneas sobre o dinheiro, que servem posteriormente de esteio intelectual para a ação maliciosa do Estado nesse campo, todos nós somos gravemente afetados e lesados. Talvez não seja de todo inútil, pois, esboçar aqui – muito imperfeitamente - os rudimentos teóricos sobre a natureza e função da moeda, de maneira que os interessados possam municiar-se de conhecimento sobre um aspecto crucial de suas vidas e, com base nele, tentar defender sua propriedade do larápio-mor que, como sempre, é o governo.

Troca Direta e Troca Indireta

Em toda sociedade cedo se percebe a vantagem da divisão e especialização do trabalho, pois o esforço especializado rende muito mais do quer sua dispersão em múltiplas tarefas concomitantes. Daí decorrem naturalmente as trocas entre produtores de mercadorias específicas. Desse intercâmbio surgem razões de troca entre os diversos produtos, preços de bens em termos de outros bens, conforme as valorações de compradores e vendedores. É a troca direta, ou escambo, que tem a desvantagem óbvia de exigir dupla coincidência de fins entre comprador e vendedor, i.e., aquele que deseja vender bananas para adquirir sapatos, por exemplo, precisa achar alguém que possua sapatos e queira trocá-los por bananas. Com o passar do tempo e com a intensificação dos intercâmbios, aparecem espontaneamente certas mercadorias dotadas de grande aceitação geral, que terminam por adquirir a qualidade de meio comum de troca, ou seja, de moeda. Nasce assim a troca indireta, na qual o aludido produtor de bananas troca sua mercadoria por dinheiro e depois dinheiro por sapatos, o que facilita enormemente o comércio. A história registra os mais variados tipos de mercadoria-moeda, tais como gado (em latim, pecus, donde pecuniário), sal (daí salário), conchas, pedras, anzóis, tabaco etc. No curso do tempo o uso monetário do ouro e da prata prevaleceu, dada a raridade, divisibilidade, homogeneidade, durabilidade e facilidade de transporte e estocagem desses metais.

Essa passagem da troca direta para a indireta, que ocorreu de forma independente em quase todas as civilizações conhecidas, representa um formidável progresso social por incrementar o comércio e a acumulação de capital, que por sua vez elevam o padrão de vida geral. Por outro lado, o caminho inverso, da troca indireta para a direta, significa um retrocesso gravíssimo. O Império Romano é um bom exemplo. Da florescente economia monetária do século II D.C. involuiu para a troca direta na medida em que o governo depreciou o dinheiro para financiar os déficits decorrentes do custo colossal de seu crescente aparato burocrático. Vastos e improdutivos gastos públicos, déficit orçamentário ascendente, tributação extorsiva, inflação e controle de preços. O resultado dessa combinação algo familiar foi a destruição da economia mercantil e monetária antiga. A invasão dos bárbaros e a economia feudal autárquica e estagnada foi um conseqüência natural dessa regressão econômica.

A Natureza do Dinheiro

Dessa breve introdução pode-se deduzir que o dinheiro é toda mercadoria que adquire a propriedade de meio comum de troca, passando a intermediar os atos de compra e venda. Vale assinalar que esse atributo específico se desprende totalmente da utilidade original da mercadoria-moeda e se torna autônomo. O ouro, por exemplo, quando usado como meio de troca, além de sua qualidade original de insumo utilizado para diversas finalidades industriais (e a própria mística de metal precioso) adquire a qualidade autônoma e específica de moeda. Para visualizar melhor esse fenômeno basta comparar o ouro-moeda com o nosso atual papel-moeda. Este último praticamente não tem valor não-monetário algum, são só tiras de papel pintado. Como dinheiro, contudo, tem a mesma natureza e função que o ouro-moeda. Outra inferência fundamental é que a moeda é uma criação do mercado, ou, o que é a mesma coisa, da livre interação contratual, voluntária e mutuamente benéfica entre os indivíduos. O que equivale a dizer que o dinheiro não é uma invenção maligna de uma classe dominante exploradora ou que decorre de um contrato social político mediado pelo Estado. O controle estatal da moeda, todavia, pode resultar, e invariavelmente tem resultado, em efetiva exploração. Mas isso veremos mais à frente.

O Cálculo Econômico

A própria existência de moeda, o meio comum de troca, ao permitir que todos os preços sejam expressados em uma única unidade de conta, torna possível o cálculo econômico complexo indispensável ao funcionamento racional de uma economia desenvolvida. Numa comunidade primitiva é possível um cálculo não-monetário rudimentar e empírico por parte dos agentes econômicos. Uma economia complexa, porém, não pode subsistir sem preços em moeda. O trabalho, o capital, a terra, os bens e serviços são heterogêneos. Os diversos tipos de trabalho não são redutíveis a uma "unidade de trabalho" (como o fracasso da teoria do valor-trabalho o demonstra), assim como é impossível somar siderúrgicas e ferrovias, ou ferro e petróleo. Os seus respectivos preços monetários, porém, podem legitimamente ser comparados, somados, multiplicados etc. Desse modo o cálculo aritmético ex-ante e ex-post de lucros e perdas, fundamental para uma economia desenvolvida, pode ser efetuado com eficácia. Não existiria desenvolvimento econômico sem moeda, preços monetários e a moderna contabilidade, conforme acentua Ludwig von Mises. Incidentalmente, vale recordar que sem propriedade privada não existem preços, nem cálculo econômico, nem progresso econômico.

Dinheiro e Incerteza

A impossibilidade de se conhecer o futuro é um dado de realidade inexorável. Dessa incerteza permanente deflui outra das funções da moeda, que é a de servir como reserva para contingências inesperadas. Os indivíduos tendem na medida do possível a manter saldos monetários disponíveis para emergências, em nível mais ou menos constante. A compreensão desse fenômeno é facilitada quando se contrasta a realidade perpetuamente cambiante com um estado imaginário de coisas em que não ocorrem mudanças, em que o futuro é sempre igual ao passado. Nesse caso, todas as pessoas sabem de antemão como será despendida a sua renda, pelo que não há a necessidade de se manter saldos de reservas monetárias. No mundo real isso não acontece, e as preferências pessoais por reservas de dinheiro constituem um dos pontos principais da determinação do valor da moeda.

O Valor do Dinheiro

O dinheiro é uma mercadoria sui generis, pois não é bem de consumo nem bem de capital. Demanda-se moeda para trocá-la por bens de consumo ou pelos serviços dos fatores de produção. Outro ponto peculiar é que, ao contrário de quase todos os demais bens, a sociedade não se beneficia de um aumento da quantidade de dinheiro. É um interessante paradoxo esse, pois se para cada indivíduo é em geral benéfico possuir mais dinheiro do que antes, para a comunidade como um todo o crescimento da quantidade de dinheiro é altamente prejudicial. A sociedade vista globalmente ganha se existem cada vez mais batatas, televisões, fábricas etc, uma vez que a elevação da oferta em geral reduz os preços e o poder aquisitivo do dinheiro dos indivíduos aumenta. Se há cada vez mais dinheiro, contudo, não há benefício geral algum (conquanto haja vantagens para grupos particulares em detrimento dos demais) pois isso se traduz na redução progressiva do valor da unidade monetária, bem como na descoordenação das atividades econômicas. Se não detida essa depreciação, o sistema monetário entra em colapso com terríveis repercussões sociais.

O poder aquisitivo da unidade monetária, que é o seu preço em relação a tudo que é trocado por dinheiro em um dado momento, jamais é fixo ou constante. Ele sempre varia. Os fatores que governam essas variações podem se originar no "lado do dinheiro" ou "no lado dos bens e serviços", ou ainda em ambos simultaneamente. Caso a quantidade de moeda decresça (deflação), e a produção de bens e serviços fique constante, aumente ou decresça menos do que a diminuição do dinheiro, o valor da moeda se eleva. Se a oferta de dinheiro se mantém fixa ao longo do tempo, o desenvolvimento econômico traduzido em maior quantidade de bens e serviços produzidos também acarreta uma elevação do valor da moeda (queda dos preços), que passa a comprar mais produtos do que antes. Se a quantidade de dinheiro aumenta pari passu com o aumento da produção, o "nível geral de preços" tende a permanecer constante. Vale notar, contudo, que esse "nível geral de preços" é um agregado imaginário, uma ficção estatística arbitrária. O que existem são milhões de preços específicos (determinados pela interação de oferta e procura segundo as valorações de compradores e vendedores), que podem ficar acima ou abaixo do "nível geral". No caso da oferta de moeda crescer mais do que produção, o resultado é o declínio do valor da unidade monetária (aumento de preços) que passa a comprar cada vez menos bens e serviços. Esses dois últimos casos se traduzem em inflação, que, ao contrário do que pensa o público (desinformado por legiões de pseudo-economistas), não é um aumento geral e contínuo dos preços. Este pode ocorrer ou não, e, quando ocorre, é sempre o efeito da inflação, que é o aumento da quantidade de dinheiro em relação a um total anterior.

Outras hipóteses de flutuação do valor da moeda relacionado ao "lado do dinheiro" ocorrem quando os indivíduos elevam ou reduzem seus saldos monetários, ainda que mantido fixo o estoque de moeda. No primeiro caso, em função de circunstâncias conjunturais que engendrem pessimismo e receio, as pessoas reduzem seus gastos correntes e investimentos e deixam mais dinheiro "parado", de modo que o valor da unidade monetária aumenta (os preços caem), pois há menos moeda sendo utilizada na aquisição de bens e serviços. Isso é o que os keynesianos denominam "entesouramento". Na hipótese inversa, as pessoas reduzem o dinheiro em caixa e aumentam seus gastos e investimentos, sendo que mais dinheiro circula e seu valor unitário cai (os preços sobem). Esse último fenômeno pode gerar um tipo curioso e raro de inflação de preços sem aumento da quantidade de dinheiro, que ocorre quando todos os agentes econômicos se apressam em zerar seus saldos monetários a qualquer custo, livrando-se do dinheiro o mais rápido possível em troca de qualquer coisa. Mesmo com um estoque fixo de dinheiro, nesse caso os preços disparam até que simplesmente ninguém aceita mais o dinheiro. Isso aconteceu quando os americanos invadiram as Filipinas em 1944, e os filipinos, prevendo a iminente vitória ianque, se deram conta que a moeda posta em circulação pelos ocupantes japoneses logo perderia totalmente seu valor. Previsivelmente, eles se precipitaram em gastar o dinheiro japonês à toda pressa, o que gerou uma hiperinflação colossal. Esse episódio, aliás, ilustra didaticamente o fato de que o valor do dinheiro, como o de tudo o mais, depende das avaliações subjetivas individuais. A redução do fenômeno monetário à equações matemáticas, como preconizam muitos economistas, é assim inútil pois não há constantes nas ações e valorações humanas que possam se traduzir em relações matemáticas seguras.

Bancos, Moeda e Crédito

Originariamente os bancos eram casas de depósito de moeda (ouro e prata) que emitiam certificados de depósito à vista para os clientes cobrando uma pequena taxa pelo serviço. Esses certificados passaram a circular mais do que a própria moeda, por razões de segurança e conveniência, e se tornaram substitutos de moeda. Como a moeda (ouro e prata) praticamente não era sacada em quantidades significativas, as casas bancárias ficaram tentadas a emitir certificados além da correspondência exata com a moeda depositada, emprestando a juros esses papéis sem lastro. Assim, se fulano depositava 100 unidades de moeda-ouro no banco x, este emprestava, digamos, 50 a sicrano cobrando juros, abrindo uma conta sujeita à retirada por cheque para sicrano. Desse modo, de 100 unidades de moeda-ouro originárias havia agora 150 unidades de papel-moeda existentes. Se fulano e sicrano decidissem resgatar seus certificados de moeda-ouro ao mesmo tempo, o banco ficaria com um passivo descoberto de 50 unidades de moeda-ouro. Dessa maneira os bancos podem criar moeda via crédito, inflacionando o meio circulante. Trata-se de fraude pura e simples, vez que os bancos e os beneficiários do crédito inflacionário estão ganhando alguma coisa em troca de coisa nenhuma. O dinheiro surge do nada. Trata-se de uma violação do direito de propriedade dos donos do dinheiro-metal. Esse processo pode ser barrado por normas jurídicas baseadas no princípio geral do dever de não causar dano, obrigando-se os bancos a operar com reservas de 100%, i.e., proibindo-os de criar moeda via crédito inflacionário. Ademais, em um mercado desimpedido, o banco que inflaciona logo se vê em dificuldades na medida em que suas emissões além das reservas são depositadas em outros bancos e na compensação a posição descoberta do banco "espertalhão" é revelada. Longe de ser solucionado, contudo, o problema foi agravado pela intervenção estatal no mercado monetário, como se verá a seguir.

Governo e Moeda

Se o dinheiro é uma antiga criação do mercado, a interferência do estado nesse campo é quase tão antiga quanto. Inicialmente os governos assumiram a tarefa de garantir a pureza do metal e o seu peso, apondo seu selo nas moedas. Os particulares levavam o ouro e a prata puros a uma oficina estatal que as transformava em moedas, cobrando uma pequena taxa pelo serviço (senhoriagem), as devolvia aos proprietários e o dinheiro passava a circular. Porém, não demorou muito para que o aparelho coercitivo estatal fosse posto a serviço dos políticos e seus clientes, em detrimento dos cidadãos comuns. O governo começou a falsificar o dinheiro misturando ouro e prata com metais baratos de um lado (aumentando a quantidade nominal de dinheiro para financiar seus gastos com uma crescente burocracia parasitária) e mantendo o valor nominal das moedas por outro lado, exigindo que o mercado não descontasse a depreciação. É claro que o resultado foi a inflação de preços e a destruição do sistema monetário.

Nos tempos modernos o mesmo processo se sofisticou bastante, malgrado a finalidade tenha permanecido a mesma: exploração. O aparecimento dos bancos, da moeda-papel e da moeda-escritural (simples magnitudes contábeis) criaram oportunidades para os governos roubarem mais do que nunca. Longe de editar leis que obrigassem os bancos a operar com reservas de 100%, os governos intervieram no mercado financeiro associando-se a (ou criando) certos bancos pseudo-privados, aos quais outorgavam privilégios como monopólios territoriais e de emissões de notas, suspensões de pagamentos, obrigatoriedade dos bancos particulares manterem depositados neles as suas reservas, administração dos fundos públicos etc. Essas instituições privilegiadas, como o Banco da Inglaterra, foram os protótipos dos atuais bancos centrais. O objetivo último desse processo é o de politizar totalmente o dinheiro, retirando do mercado, isto é, de nós, o poder de criar moeda. Para tanto foi necessário destruir o padrão-ouro internacional. Na vigência deste, a moeda mundial era o ouro, sendo as moedas nacionais vinculadas ao metal em uma paridade fixa. As notas bancárias nacionais podiam ser convertidas em ouro a qualquer tempo por qualquer um que assim o desejasse, bastando exigir dos bancos a troca das notas pelo ouro correspondente. Como tudo o que é humano, o padrão-ouro não é perfeito. A quantidade de moeda aumenta na medida em que mais ouro é descoberto e monetizado. Subsiste, pois, inflação que beneficia os mineradores. A grande vantagem, porém, é que a criação da moeda fica fora do alcance dos políticos e seus amigos. O estoque de moeda-ouro aumenta na medida em que os custos de mineração compensam a obtenção do metal, isto é, quando se gasta menos ouro na mineração do que se extrai da terra. Mas se o dinheiro é apenas papel, não há custo quase nenhum na sua impressão, e há menos custo ainda na criação contábil de dinheiro, de maneira que os governos podem inflacionar o meio circulante em escala sem precedentes. Outro ponto positivo era o freio imposto à políticas inflacionárias dos estados nacionais. Se o governo do país x decidisse criar dinheiro além das reservas-ouro, o banco central baixava artificialmente a taxa de juros, criando moeda do nada via depósitos bancários. Em reação, as pessoas convertiam suas notas em ouro e mandavam o metal para o país y, onde os juros eram mais altos; por outro lado, a maior quantidade de dinheiro elevava os preços internos e, com isso, incentivava a importação de similares estrangeiros mais baratos, sendo que os estrangeiros passavam a trocar a moeda por ouro e transferi-la para seus países de origem. A contração das reservas do país x punha todo o seu sistema financeiro em cheque (pois havia cada vez menos ouro em relação a papel), e o seu banco central era obrigado a elevar a taxa de juros para atrair ouro de fora e recompor suas reservas.

Desde o fim do padrão-ouro internacional em 1914 os governos ficaram cada vez mais livres para inflacionar a moeda, inclusive "teorias" como o keynesianismo foram concebidas e popularizadas como forma de propaganda ideológica para justificar os "benefícios" da moeda gerenciada pelo governo e para pintar o padrão-ouro como velharia ultrapassada, "relíquia bárbara" etc. O monetarismo de Chicago não difere muito nesse aspecto. E os marxistas continuam pensando que o futuro comunismo inaugurará uma era de abundância tamanha que o próprio dinheiro será abolido. Desde então a inflação tornou-se uma praga mundial sem igual na História. O dólar americano desvalorizou-se em mais de 90%, enquanto que moedas de países mais bagunçados como o nosso perderam mais de um quatrilhão % de seu poder de compra. Com a inflação os governos, via cartelização do sistema bancário sob a batuta dos bancos centrais, podem beneficiar seus clientes (o estamento burocrático, empresários privilegiados, bancos etc) à vontade, enquanto surrupiam o poder aquisitivo da maioria da população (sobretudo os mais pobres).

Para ilustrar o processo pelo qual o governo rouba o povo via manipulação da moeda, imagine o leitor que o seu prédio é um país. Suponhamos que o síndico, o Seu Palhares do 402, é o governo desse país e dispõe do poder de criar dinheiro. Esse síndico-governo logo cede à tentação de criar moeda ex-nihilo para comprar as coisas que os outros moradores do "país" produzem. O "governo" está ganhando alguma coisa em troca de nada. Para criar um ambiente favorável a esse roubo sistematizado, o Seu Palhares alicia outras famílias, distribuindo o dinheiro novo entre eles. Surge um processo de depreciação acelerada do poder de compra da moeda do "país", pois há cada vez mais dinheiro comprando as mesmas coisas de antes, mas nem todo mundo perde ao mesmo tempo. Quem recebe a grana inflacionária primeiro ganha mais do que quem recebe por último, pois para estes os preços já subiram quando a moeda nova circulou. A cereja do bolo é a ideologia legitimadora difundida pelos intelectuais do prédio, todos devidamente inseridos na folha de pagamento do Seu Palhares, a qual garante ao "povo" que o sábio e idôneo governo sabe o que é melhor para seus cidadãos e que a administração da moeda é assunto científico complexo que deve necessariamente ficar à cargo dos especialistas. Quando a coisa começa a dar muito na vista, o síndico e seus intelectuais de aluguel põem a culpa do aumento generalizado de preços na ganância de certos moradores, como a D. Maria do 301, que vende doces e salgados, e decreta um congelamento de preços. Quando o congelamento fracassa, o "governo" então contém um pouco a emissão e impõe o sistema de "metas inflacionárias", que é um roubo generosamente auto-delimitado pelo próprio ladrão. Por outro lado, para financiar a boa vida do síndico e seus amigos e aliados, a taxa de condomínio (ou seja, os impostos) sobe para as alturas. Ninguém reclama, pois é consensual que o produto arrecadado será "investido no social". Deu pra entender?

Outros fatores desastrosos na inflação são a falsificação da moeda como unidade de conta, com a conseqüente desorganização do sistema produtivo, bem como a descoordenação dos estágios da estrutura de capital, gerando os famigerados ciclos econômicos com suas fases de prosperidade artificial e posterior recessão ou depressão.

Solução: Despolitizar o Dinheiro

O absoluto controle estatal do dinheiro hoje reinante acarretou desgraças inenarráveis a povos inteiros. A inflação desbragada em nosso país é a principal responsável pela miséria de tantos de nossos compatriotas. Desde Hilferding, os marxistas juram que o "capital financeiro" se apossou do Estado para explorar a sociedade, inclusive o "capital produtivo". A verdade é bem outra: o estado é que se assenhoreou do sistema financeiro em benefício próprio para explorar a sociedade. Enquanto nós, o povo, o mercado, não recuperarmos o nosso legítimo poder sobre o dinheiro, retornando ao padrão-ouro internacional (ou outro padrão qualquer não imposto pelos governos) e bancos com reservas de 100%, a instabilidade econômica global não terá solução e uma grande crise como a dos anos 30 pode sobrevir a qualquer momento. Trata-se antes de tudo de uma questão moral: não é justo (nem conveniente) que um grupo de indivíduos munidos do monopólio da violência e da coerção – ou seja, o Estado – detenha o privilégio socialmente catastrófico de determinar a oferta de moeda. Esse poder sempre será usado para o mal, como a experiência demonstra à saciedade.

Referências

The Value of Money, de B. Anderson;

A Desestatização do Dinheiro, de F. Hayek

From Bretton Woods to World Inflation e The Inflation Crises and How to Resolve it, de H. Hazlitt;

The Theory of Money and Credit e Ação Humana de L. von Mises.

Man, Economy and State, Power and Market e What the Government Has Done to Our Money?, de M. Rothbard;

The Age of Inflation, de H. Seinholz;

Lectures of Political Economy, vol. II, de K. Wicksell;

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Conforme apresentação de Olavo de Carvalho "Alceu Garcia não existe. É o pseudônimo de um cidadão que, cercado de esquerdistas por todos os lados, e já conhecendo o tratamento que eles dão a quem ouse contrariá-los no local de trabalho, tem bons motivos para desejar permanecer incógnito. Camuflado ou não, é um excelente escritor (...)."

domingo, 16 de outubro de 2011

O erro fundamental da regulação de “serviços públicos”


por Gennady Stolyarov II (publicado originalmente em fevereiro de 2006)

Com o intuito de evitar “concorrência excessiva” entre serviços públicos em uma determinada área geográfica, os governos têm, frequentemente, outorgado monopólios legais específicos para empresas de fornecimento de água, eletricidade e gás natural – ou, de outra forma, decidem prover os serviços por meio de empresas puramente estatais.

Firmas competitivas foram legalmente excluídas dos mercados de “serviços públicos”, com resultados desastrosos. Blecautes ocasionais e interrupção no provimento de água são comuns no dia-a-dia de  muitos norte-americanos – enquanto em mercados livres, digamos, alimentos, nenhuma escassez digna de nota é verificada. Além disso, os preços para as “utilidades públicas” estão em alta, concomitante à degradação, ao invés de melhoria da qualidade dos serviços.

Esta tendência não é acidental. Pelo contrário, como argumentado pelo economista Friedrich A. Hayek (1899-1992), tal fenômeno é consequência inevitável da intromissão governamental nos mercados de serviços públicos. O governo restringe a concorrência nestes setores. A competição, por outro lado, é essencial para descobrir a melhor maneira de se prestar serviços de forma a maximizar o lucro e a eficiência. Sem a dinâmica de um mercado totalmente livre, fornecedores de serviços públicos não dispõe de mecanismos para saber se sua forma de provisão é vantajosa para eles e para seus consumidores. Como consequência, a qualidade de vida de todos é afetada.

Os reguladores das concessionárias de serviços públicos acreditam que os meios adequados de provisão já são conhecidos. Com base nessa suposição, cobram preços ao consumidor fundamentados em abordagens cost plus. O estado determina o preço somando o “custo” do serviço propriamente dito a uma “taxa normal de retorno”, aplicada aos bens de capital empregados pela prestadora.

Este ponto de vista, é claro, falaciosamente presume que, para um dado serviço, existem custos fixos que podem ser determinados com antecedência – bem como uma “taxa normal de retorno” – que não precisam estar sujeitos às flutuações do mercado. No entanto, como demonstrou Hayek, esta abordagem desconhece completamente a inestimável função desempenhada pelos preços como transmissores de conhecimento sobre o verdadeiro valor – valor que não existe em estado fixo, estático.

O mercado é um processo, não um estado definido

A visão econômica mainstream, a qual é contestada por Hayek, enxerga os mercados como estados estáticos em vez de processos dinâmicos. A Ciência Econômica predominante concentra-se maciçamente em análises de estados de equilíbrio – raramente verificados na economia real – sem se preocupar com a forma com que os mercados alcançam esse estágio.

Além disso, a abordagem mainstream frequentemente assume que todos os atores econômicos possuem informação perfeita sobre toda a economia e que sua escala individual de valores reflete a única escala de valores de todos os outros participantes na economia. Os reguladores dos serviços públicos regularmente cometem esse equívoco; acreditam que possuem a sua disposição informações sobre qual deveria ser o preço “ótimo” do serviço.

Hayek, no entanto, interpretava o mercado como sendo um processo, um sistema no qual necessariamente envolve um elemento empírico: o fato observado que todos os participantes do mercado detêm conhecimento imperfeito e incompleto. Em vez de analisar equilíbrios estáticos perfeitos, para Hayek a questão central da Economia é estudar como o mercado facilita a aquisição e a disseminação do conhecimento. De acordo com Hayek, não há uma escala de valor única na economia de mercado; não existe um objetivo único para o qual tende a economia, cujo alcance se dá num estado de equilíbrio perfeito.

Nenhum indivíduo apreende todos os fatos; diferentes agentes possuem diferentes habilidades e experiências. Existem discrepâncias nas informações. Aplicado ao mercado de serviços públicos, isso significa que os agentes excluídos pela intervenção governamental detém informações valiosas, as quais os reguladores não possuem. Eles, os excluídos, podem saber como obter eletricidade ou tratar água de forma mais econômica; podem ter conhecimento técnico que permita a construção de melhores redes elétricas ou sistemas de dutos. Podem até mesmo possuir conhecimento tácito ou inarticulável que colabore com o dia-a-dia da gestão do negócio – conhecimento difícil ou impossível de ser expresso em palavras e transmitido a outros.

Ao invés de apenas confiar em construções matemáticas formais de equilíbrio estático, o economista precisa examinar a realidade empírica e construir, a partir de suas observações, uma teoria capaz de explicar como os mercados coordenam discrepâncias de habilidades de informações, bem como os planos individuais dos agentes econômicos. Dada a diversidade que se apresenta, como o mercado ajuda as pessoas a atender as expectativas umas das outras? Como o mercado corrige expectativas falsas ou erradas da parte de um determinado agente econômico?

A falácia da “competição perfeita”

Economistas do mainstream frequentemente descrevem o funcionamento “ótimo” de um mercado utilizando uma equação simples: P=CM, onde o preço do produto é igual a seu custo marginal de produção. Essa fórmula, de acordo com os modelos neoclássicos, descreve o estado de “competição perfeita”. Reguladores de serviços públicos constantemente tentam combinar dados  obtidos através de modelos de “competição perfeita” e os preços dos serviços.

Tal abordagem ignora por completo a função da competição. De fato, ela foge da questão crucial que uma teoria de competição deveria responder: como um mercado competitivo tende a harmonizar preços e custos marginais, oferta e demanda? Além disso, todo o propósito e utilidade da competição consiste na capacidade de determinar quais são os custos e preços ótimos para um dado conjunto de bens.

Não há nenhuma maneira de saber, de antemão, como seriam custos e preços, e então esperar que a concorrência defina-os nos níveis previstos. Pelo contrário, é a competição que leva a descoberta dos preços e custos “ótimos”, sendo que estas informações não podem ser adquiridas antes da concorrência em si. Competição, por definição, não pode ser um estado final ideal. É um processo constante e contínuo para descobrir o modo ideal de produção em uma economia, obtendo-se respostas cada vez melhores para este desafio. Vários agentes econômicos podem ter diferentes informações sobre como melhorar a prestação de serviços públicos. Eles só podem tirar o máximo proveito desse conhecimento, no entanto, se estiver em funcionamento um sistema de preços de livre mercado.

O indispensável sistema de preços

Na visão de Hayek, a estrutura de preços do livre mercado é uma importante ferramenta para os problemas da imperfeição e “economização” do conhecimento. Os preços fornecem aos consumidores todas as informações que necessitam para ajustar adequadamente suas decisões econômicas – ainda que a maioria dos consumidores nunca venha a conhecer todos os detalhes dos distúrbios mercadológicos que tornaram necessários os ajustes.

Por exemplo, dutos de gás natural no Canadá podem, inesperadamente, explodir – sem que quase ninguém nos EUA venha a saber. A redução da oferta de gás natural implicará em preços maiores a serem pagos por fornecedores locais de gás. A maioria dos consumidores e provedores provavelmente nunca tomará conhecimento do incidente, no entanto os novos (e mais altos) preços do gás natural os informará acerca da necessidade de economizar o recurso. Os agentes agora comprarão menos gás em comparação com a situação anterior.

Além disso, aqueles que desejarem comprar mais gás na situação de preços mais altos, terão a quantidade de produto que realmente precisam. Eles expressam essa nova escala comparativa de valores pela disponibilidade de pagar um montante maior pelo gás em relação a outros participantes do mercado. Um único número – o preço do produto – permite aos agentes de um determinado mercado ajustar suas decisões de modo a se beneficiar delas. No livre mercado, ainda que os atores econômicos tivessem pleno conhecimento das causas originais que provocaram a alteração do preço, estes indivíduos não teriam tomado decisões melhores que aqueles guiados unicamente pela mudança do preço.

Ainda, é a competição que torna os preços indicadores acurados sobre a verdadeira oferta e demanda de um dado produto. “Competição” não pode ser um modelo que incorpora de antemão o perfeito conhecimento dos dados econômicos pelo fato de ser a própria competição o processo de descoberta dos dados. Os resultados e o fim “lógico” da competição não podem ser conhecidos antes que a concorrência se estabeleça. A teoria de Hayek, portanto, exclui a possibilidade de um monopólio governamental (ou regulado) ser capaz de estabelecer “preços competitivos” para seus serviços.

A coerção está fadada ao fracasso 

Dado que o governo é inerentemente um monopólio coercitivo, está imune a competição, tendo ainda a capacidade de barrar os potenciais competidores dos mercados de serviços públicos via ameaça de força. O governo (e agências reguladoras) não podem saber quais são os verdadeiros custos dos produtos ou serviços, uma vez que o processo competitivo para descobri-los não é permitido. E mais, qualquer valor que o estado designe como sendo o “preço” não passará de um número arbitrário.

Num mercado competitivo, homens de negócio – almejando o lucro – teriam continuamente descoberto melhores forma de prover os serviços públicos regulados. Teriam apresentado formas, até então desconhecidas, de cortar custos, aumentar a produtividade e eliminar desperdícios. O governo, ao restringir a competição, evita que tais descobertas venham à tona, fazendo com que os consumidores paguem mais pelos serviços.

Friedrich Hayek fornece uma eloquente argumentação para que o mercado realize essa coordenação; qualquer intervenção governamental na estrutura de preços e competição inevitavelmente vai distorcer ambos e impedir o processo de descoberta que o livre mercado permite. Hayek mostra que os maus serviços que acompanham os monopólios regulados (ou estatais) não são mera correlação; são causados, de fato, pela intromissão coercitiva no extraordinário sistema de preços, o qual os reguladores não apreciam ou não entendem.

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G. Stolyarov II já contribuiu com os sites Enter Stage Right, Le Quebecois Libre, Rebirth of Reason, Ludwig von Mises Institute e The Liberal Institute. Seu artigo “The Compatibility of Hoppe’s and Rothbard’s Views on the Action Axiom,” foi publicado no Quarterly Journal of Austrian Economics.

Tradução de Daniel Marchi

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O gênio criador


Homenagem do Grupo de Estudos da Escola Austríaca de Brasília-DF ao grande empreendedor e gênio criador Steve Jobs (1955 - 2011)

por Ludwig von Mises (extraído de Ação Humana, Capítulo VII)


Muito acima dos milhões de indivíduos que nascem e morrem, destacam-se os pioneiros, os homens cujos atos e ideias abriram novos caminhos para a humanidade. Para esses gênios desbravadores, criar é a essência da vida. Viver, para eles, significa criar.

As atividades desses homens prodigiosos não podem ser inteiramente enquadradas no conceito praxeológico de trabalho. Não são trabalho porque, para o gênio, não são meios, mas fins em si mesmos. Para o gênio, viver é criar e inventar. Para ele, não há lazer, mas apenas intervalos de esterilidade e frustração. Seu estímulo não vem do desejo de obter um resultado, mas do próprio ato de produzi-lo. A realização não o gratifica nem direta nem indiretamente. Não o gratifica indiretamente porque seus semelhantes, na melhor das hipóteses, não manifestam, por sua realização, nenhum interesse e, até mesmo, frequentemente a recebem com escárnio, chacota e perseguição. Muitos gênios poderiam usar seus dons para tornar sua vida agradável e alegre; mas sequer cogitam desta possibilidade e escolhem o seu caminho sem hesitação, mesmo se espinhoso. O gênio quer realizar o que considera sua missão, mesmo sabendo que pode ser conduzido ao seu próprio desastre.

Tampouco o gênio obtém de sua atividade criativa uma gratificação imediata. Criar, para ele, é uma agonia e um tormento; é uma luta incessante e penosa contra obstáculos internos e externos, que o consome e esgota. O poeta austríaco Grillparzer soube descrever esta situação num poema comovente: "Adeus a Gastein". Podemos supor que, ao escrevê-lo, não pensou somente em suas próprias penas e atribulações, mas também nos sofrimentos ainda piores de um grande homem, Beethoven, com cuja sorte muito se identificava e a quem compreendeu, melhor do que qualquer de seus contemporâneos, graças à sua zelosa afeição e compreensiva admiração pelo grande compositor. Nietzsche se comparava à chama que insaciavelmente se consome e se destrói. Tais agonias são fenômenos que não têm nada em comum com as conotações geralmente atribuídas às noções de trabalho e esforço, de produção e sucesso, de ganhar o pão e gozar a vida.

As obras do gênio criador, seus pensamentos e teorias, seus poemas, pinturas e composições, não podem ser classificadas, praxeologicamente, como produtos do trabalho. Não são o resultado do emprego de uma capacidade de trabalho que poderia ser usada para produzir outras amenidades, para a "produção" de uma obra-prima de filosofia, arte ou literatura. Pensadores, poetas e artistas são, frequentemente, incapazes de realizar qualquer outro trabalho. Seja como for, o tempo e esforço que devotam às atividades criadoras não é subtraído do que empregariam para outros propósitos. As circunstâncias, às vezes, condenam à esterilidade um homem que teria tido a capacidade de criar coisas inauditas; talvez não lhe deixem alternativa a não ser morrer de fome ou usar todas as suas forças na luta pela simples sobrevivência. Mas, se o gênio consegue alcançar as metas a que se propôs ninguém, além dele, pagará pelos "custos" incorridos. Goethe talvez tenha sido estorvado por suas funções na corte de Weimar. Mas certamente não se teria desincumbido melhor de seus deveres como ministro de Estado, diretor de teatro e administrador de minas, se não tivesse escrito suas peças, poemas e novelas.

Além do mais, é impossível substituir o trabalho de um gênio criador pelo trabalho de qualquer outra pessoa. Se Dante e Beethoven não tivessem existido, não seria possível produzir a Divina Comédia ou a Nona Sinfonia, atribuindo esta tarefa a outras pessoas. Nem a sociedade nem qualquer indivíduo podem fazer existir um gênio e sua obra. Nem a "demanda", por maior que seja, nem ordens peremptórias de governo produzem o menor efeito. O gênio não produz por encomenda. Os homens não podem aperfeiçoar as condições naturais e sociais de forma a provocar o surgimento do gênio criador e sua obra. É impossível formar gênios pela eugenia, treiná-los nas escolas ou organizar suas atividades. Mas, sem dúvida, a sociedade pode ser organizada de tal maneira que impeça o surgimento de pioneiros e suas descobertas.

O talento criativo do gênio é, para a praxeologia, um fato irredutível. Aparece na história como um presente do destino. Não é, de forma alguma, o resultado de uma produção no sentido com que a economia emprega este termo.

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Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico.  Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.  Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico.  Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Investimentos públicos não lucrativos e subsídios

por Ludwig von Mises (extraído de "Intervencionismo, Uma Análise Econômica", capítulo IV)



Os empresários só levam adiante projetos que sejam lucrativos.  Isso significa que eles usam os meios de produção, que são escassos, de maneira a satisfazer primeiro as necessidades mais urgentes, e que nenhum capital ou mão de obra será utilizada para satisfazer necessidades menos urgentes enquanto houver uma necessidade mais urgente ainda não atendida.

Quando o governo intervém tornando possível um projeto que, em vez de lucros, gera prejuízos, todos falam das necessidades que serão assim atendidas; ninguém fala das necessidades que deixam de ser atendidas porque o governo desviou para outros fins os recursos disponíveis.  Só se considera o benefício proporcionado pela ação do governo, e não o seu custo.

Não cabe ao economista dizer o que o povo deve preferir e nem como deve usar os seus recursos.  Mas é de seu dever chamar a atenção de todos para os custos das decisões do governo.  Isso o diferencia do charlatão, que só fala dos benefícios da intervenção sem jamais se referir aos malefícios que ela acarreta.

Consideremos, por exemplo, um caso que podemos hoje analisar objetivamente porque é um assunto passado, embora não um passado muito distante.  Suponhamos que uma estrada de ferro, cuja construção e operação não seriam economicamente viáveis, isto é, não seriam lucrativas, seja viabilizada pela concessão de um subsídio do governo.  Costuma-se dizer, em situações como essa, que a estrada de ferro não seria lucrativa no sentido usual do termo e que, portanto, não despertaria o interesse dos empresários e dos capitalistas.  Mas contribuiria para o desenvolvimento de toda uma região promovendo o tráfego, o comércio e a agricultura, dando assim uma importante contribuição para o progresso da economia.  Tudo isso precisaria ser levado em consideração ao se avaliar, com uma visão maior, a conveniência de se executar a estrada de ferro em vez de se ficar limitado a considerações de lucratividade.  Para o interesse privado, a construção da estrada de ferro pode parecer desaconselhável, mas do ponto de vista do interesse público sua construção seria benéfica.

Esse raciocínio está inteiramente errado.  É claro que não se pode negar que a construção da estrada de ferro beneficia os habitantes da região por ela servida.  Ou, melhor dizendo, beneficia os proprietários de terras da região e os que fizeram investimentos que não podem ser transferidos sem uma diminuição de seu valor.  Alega-se, geralmente, que a estrada irá desenvolver as forças produtivas da região atendida.  O economista tem que colocar a questão de forma diferente: o Estado usa o dinheiro dos contribuintes para subsidiar a construção, a manutenção e a operação da linha que, sem esse subsídio, não poderia ser construída e operada.  Esses subsídios desviam uma parte da produção de locais cujas condições naturais são mais favoráveis à produção para locais menos adequados a esse propósito.  Estará sendo cultivada uma terra que, devido a sua distância dos centros de consumo e devido a sua baixa fertilidade, não possibilitaria a existência de uma agricultura rentável, a não ser que fosse favorecida pelo subsídio dado ao sistema de transporte, para cujo custo não teria condições de contribuir proporcionalmente.  Sem dúvida, esses subsídios contribuem para o desenvolvimento econômico da região onde, não fora isso, a produção seria menor.  Mas o aumento de produção na região assim favorecida pelo subsídio governamental deve ser contrastado com o ônus imposto sobre a produção e o consumo nas regiões que terão que pagar por essa política do governo.  As terras mais pobres, menos férteis e mais distantes estão sendo subsidiadas com a arrecadação de impostos que ou estão onerando a produção de terras melhores ou estão sendo arcados diretamente pelos consumidores.  As empresas localizadas em regiões menos adequadas terão condições de aumentar a produção, enquanto as empresas mais bem localizadas terão que restringir a sua produção.  Há quem considere isso "justo" ou politicamente correto, mas não devemos nos iludir e acreditar que dessa forma a satisfação geral estará sendo aumentada; na realidade, está sendo diminuída.

O aumento de produção na região servida pela estrada de ferro subsidiada não deve ser considerado como "benéfico do ponto de vista da prosperidade nacional".  Esses benefícios significam apenas que um certo número de empresas estará operando em locais que, não fora o subsídio, seriam considerados inadequados.  Os privilégios concedidos pelo Estado a suas empresas, ainda que indiretamente através do subsídio à estrada de ferro, não são diferentes dos privilégios que o Estado concede diretamente a empresas menos eficientes.  No final das contas, dá no mesmo o Estado subsidiar ou conceder privilégios a um sapateiro, por exemplo, a fim de habilitá-lo a competir com a indústria de calçados, ou favorecer o proprietário de terras, cuja competitividade é menor em virtude de sua localização, utilizando recursos públicos para pagar parte do custo de transporte de seus produtos.

Pouco importa se o Estado efetua o investimento improdutivo diretamente ou se ele subsidia uma empresa privada para viabilizar a realização de um projeto antieconômico.  O efeito sobre a comunidade é o mesmo, em ambos os casos.  Tampouco importa o método usado para conceder o subsídio.  Não importa se o produtor menos eficiente é subsidiado para que possa produzir ou aumentar sua produção ou se o produtor mais eficiente é incentivado a não produzir ou reduzir sua produção.  Pouco importa se a doação é feita para produzir ou para não produzir, ou se o governo apenas compra as mercadorias e as retira do mercado.  Em ambos os casos os cidadãos pagam duas vezes - uma vez como contribuintes, que são os que indiretamente pagam os subsídios, e depois uma vez mais como consumidores, ao ter que pagar preços maiores pelos bens que desejam comprar ou por ter que reduzir seu consumo.

Altruísmo empresarial 

Quando os que se autodenominam "progressistas" usam a palavra lucro, o fazem enfurecidos e raivosos.  Para eles o ideal seria que não existisse o lucro.  O empresário deveria servir o povo altruisticamente, em vez de tentar obter lucros.  Deveria não ter lucro ou se contentar com uma pequena margem sobre os seus custos.  Nenhuma objeção é feita se ele tiver que suportar prejuízos.

Mas a motivação para o lucro da atividade empresarial é precisamente o que dá sentido e significado, orientação e direção à economia de mercado baseada na propriedade privada dos meios de produção.  Eliminar a motivação pelo lucro equivale a transformar a economia de mercado numa completa desordem.

Já examinamos o confisco dos lucros e as consequências de uma tal medida.  Examinemos agora a sugestão de limitar os lucros a uma determinada porcentagem dos custos.  Se assim fosse, quanto maior o custo, maior o ganho do empresário; o incentivo de se produzir o mais barato possível seria substituído pelo seu oposto.  Cada redução no custo de produção reduziria seu ganho; cada aumento no custo de produção aumentaria sua renda.  Não é preciso supor que o empresário tenha intenções sinistras; basta entender o que uma redução de custo lhe acarreta.  Na maior parte dos casos o empresário pode conseguir reduzir os seus custos de duas maneiras; comprando bem as matérias-primas e os produtos semiacabados, e adotando métodos de produção mais eficientes.  Ambos implicam uma boa dose de risco e uma boa dose de inteligência e de experiência.  Como em qualquer outra ação empresarial, saber se é hora de comprar ou de se abster de comprar é sempre uma especulação sobre um futuro incerto.

Um empresário que arque integralmente com os prejuízos, mas só possa ter uma parte dos lucros e que ganhe mais na medida em que aumentem os seus custos é completamente diferente do empresário a quem serão creditados ou debitados a totalidade de seus lucros ou perdas.  Sua postura diante dos riscos do mercado será completamente diferente: não terá o mesmo empenho em descobrir onde comprar por preços menores do que o teria um empresário atuando numa economia livre.  O mesmo se aplica aos aprimoramentos dos métodos de produção.  São iniciativas arriscadas; investimentos adicionais são necessários sem que se possa ter certeza, a priori, de que produzirão resultados.  Por que razão iria o empresário correr esse risco se, em caso de sucesso, seria punido com uma redução na sua receita?

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Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico.  Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.  Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico.  Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

domingo, 14 de agosto de 2011

Competição e função empresarial

por Jesus Huerta de Soto (extraído do capítulo 2 de A Escola Austríaca)

O termo "competição" procede etimologicamente do latim cum petitio (competição simultânea de reivindicações sobre uma mesma coisa que é necessário adjudicar ao seu dono) formado por cum, com, e petere, pedir, atacar, buscar.  A competição consiste, portanto, num processo dinâmico de rivalidade e não no denominado "modelo de concorrência perfeita", no qual múltiplos fornecedores atuam da mesma forma e vendem todos ao mesmo preço, ou seja, no qual, paradoxalmente, ninguém compete (Huerta de Soto, 1994: 56-58).

A função empresarial, pela sua própria natureza e definição, é sempre competitiva.  Isto quer dizer que, uma vez que seja descoberta pelo agente uma determinada oportunidade de lucro e que este atue para aproveitá-la, essa oportunidade de lucro tende a desaparecer, de forma que não pode ser detectada e aproveitada por outros agentes.  De igual forma, se a oportunidade de lucro apenas é parcialmente descoberta, ou se, tendo sido totalmente descoberta, apenas foi aproveitada parcialmente pelo agente, parte dessa oportunidade ficará latente e passível de ser descoberta e aproveitada por outros agentes.  O processo social é, portanto, puramente competitivo, no sentido de que os diferentes agentes rivalizam uns com os outros, de forma consciente e inconsciente, para detectar e aproveitar antes dos demais as oportunidades de lucro.

Todo o ato empresarial descobre, coordena e elimina desajustamentos sociais e, em função do seu caráter essencialmente competitivo, faz com que esses desajustamentos, uma vez descobertos e coordenados, já não possam voltar a ser detectados e eliminados por nenhum outro empresário.  Poderia se pensar erroneamente que o processo social movido pela empresarialidade poderia chegar pela sua própria dinâmica a parar ou desaparecer, assim que a força da empresarialidade tivesse descoberto e esgotado todas as possibilidades de ajuste social existentes.  No entanto, o processo empresarial de coordenação social jamais se detém ou esgota.  Isto é assim porque o ato coordenador elementar consiste basicamente em criar e transmitir nova informação que deve forçosamente modificar a percepção geral de objetivos e meios de todos os empresários implicados.  Este fato, por sua vez, dá lugar à aparição ilimitada de novos desajustamentos que fazem surgir novas oportunidades de lucro empresarial num processo dinâmico que nunca tem fim e que faz avançar a civilização.  Ou seja, a função empresarial, não só torna possível a vida em sociedade ao coordenar o comportamento desajustado dos seus membros, como também impulsiona o desenvolvimento da civilização, ao criar continuamente novos objetivos e conhecimentos que se difundem gradualmente por toda a sociedade.  Além disso, e isto é muito importante, a função empresarial permite que o processo atrás descrito se desenvolva de forma tão harmoniosa e ajustada quanto seja humanamente possível em cada circunstância histórica, uma vez que os desajustamentos que constantemente se criam à medida que avança a civilização e aparece nova informação empresarial, tendem por sua vez a serem descobertos e eliminados pela própria força empresarial da ação humana.  Ou seja, a função empresarial é a força que torna a sociedade coesa e possibilita o seu desenvolvimento harmonioso, já que os desajustamentos que inevitavelmente são produzidos nesse processo de desenvolvimento tendem a ser igualmente coordenados pela mesma.

O processo empresarial origina, portanto, uma espécie de contínuo big bang social que permite o crescimento ilimitado do conhecimento.  Assim, como já vimos, em alternativa ao modelo de equilíbrio geral ou parcial dos neoclássicos, a Escola Austríaca oferece um paradigma baseado num "processo dinâmico geral" ou, se preferirmos "big bang social", em contínua expansão e com tendência para a coordenação.  Já se chegou a calcular que o limite máximo de expansão do conhecimento na Terra é de 10 elevado a 64 bits (Barrow e Tipler, 1986: 658-677) pelo que seria possível aumentar em mais de cem bilhões de vezes os limites físicos de crescimento até agora considerados.  Os mesmos autores demonstraram matematicamente que uma civilização humana com base espacial poderia expandir o seu conhecimento, riqueza e população sem limite.  Ambos se apoiam nas principais contribuições da Escola Austríaca em geral e de Hayek em particular, tendo concluído que foram muitas as incorreções escritas sobre os limites físicos do crescimento econômico por parte de físicos que ignoravam a economia.  Uma análise correta dos limites físicos ao crescimento apenas é possível se levarmos em conta a contribuição de Hayek, segundo o qual o que um sistema econômico produz, mais do que objetos materiais, é um conhecimento imaterial (Tipler, 1988: 4-5).

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Abaixo, vídeo com exposição do professor Huerta de Soto sobre competição e função empresarial.


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Jesús Huerta de Soto, professor de economia da Universidade Complutense de Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do liberalismo clássico no mundo.

domingo, 31 de julho de 2011

A função social do empresário

por Alceu Garcia (publicado originalmente em abril de 2002)

Resolvi me apropriar, para ilustrar o tema deste artigo, de dois episódios da experiência pessoal do ilustre escritor e jornalista Janer Cristaldo narrados em algumas de suas saborosas crônicas publicadas no site http://www.baguetediario.com.br

No primeiro episódio, Cristaldo relata a alegria dos habitantes do povoado gaúcho em que nasceu e vivia quando dois mascates de origem turca apareciam por aquelas paragens, montados em bicicletas atulhadas de traquitanas inexistentes na localidade.

No outro "causo", o escritor conta suas infrutíferas peripécias para conseguir beber cerveja em um movimentado balneário na Romênia comunista. Praia cheia, sol à pino, o sedento Cristaldo dirige-se a um quiosque próximo em busca do precioso líquido para molhar a garganta. O barraqueiro público – pois tudo era estatal na Romênia -, porém, frustra o turista brasileiro ao informar que não dispunha de cerveja. Refrigerante? Não tinha. Água mineral? Também não. Não havia nada para vender e pronto. E o que o sujeito fazia ali então, indagou Cristaldo? O zeloso funcionário público – pois todos eram funcionários públicos na Romênia - respondeu, indignado, que estava cumprindo regularmente seu horário de trabalho. Não era problema dele se não havia mercadorias disponíveis para os banhistas.

A badalada praia romena, em que não havia nada para comprar, e o obscuro rincão gaúcho, onde havia, simbolizam duas ordens sociais radicalmente diferentes: na primeira, a função empresarial é proscrita; na segunda ela é permitida. Em suma, uma é socialista e a outra é capitalista. O socialismo presume que a atividade empresarial, que se funda na propriedade privada e nas trocas voluntárias, é a priori nefasta e espoliadora. O empresário (ou capitalista burguês, na terminologia de Marx) é um parasita cuja erradicação é um imperativo de justiça social. A supressão da propriedade privada e do motivo do lucro são condições sine qua non para que o egoísmo execrável seja banido da face da Terra e uma nova era de solidariedade e humanismo seja inaugurada. É claro que nada disso aconteceu onde essas idéias "brilhantes" foram levadas às suas últimas consequências, muito pelo contrário. E não havia nada para comprar nas barracas públicas das praias nem em lugar nenhum. Porquê?

A resposta é simples: onde a função empresarial é proibida, a escassez artificial de tudo está garantida. Mas que raio de função é essa afinal? Malgrado sua importância fundamental pareça instintivamente evidente aos leigos, é lastimável constatar que o que é ensinado sob o rótulo de Economia nas universidades, com raras exceções, raramente ou nunca aborda esse tema. Nas faculdades os alunos trabalham basicamente com dois paradigmas: a microeconomia walrasiana, na qual a figura do empresário é reduzida a uma abstração numérica e metida em equações matemáticas simultâneas tão garbosas quanto cientificamente estéreis; e a macroeconomia keynesiana, onde a função empresarial simplesmente não existe.

Quem procura embasamento teórico sobre esse assunto vital tem que estudar os obscuros economistas da Escola Austríaca, como L. von Mises, F. Hayek (esse ao menos ganhou o Nobel), M. Rothbard e Israel Kirzner, cujas teorias não são ventiladas nos centros acadêmicos. Mas não é difícil entender o conceito e correlacioná-lo com a realidade circundante. Como vivemos um um mundo imperfeito, em que o futuro é incerto e as nformações de que cada um dispõe sobre o que se passa ao redor são sempre incompletas e fragmentadas, a verdade é que somos todos de certa forma empresários. Isso mesmo, leitor! Se você é socialista, sinto muito; só lhe resta cometer suicídio pelo bem do "proletariado".

Cada indivíduo traça seus planos à luz de objetivos de qualquer natureza que estipula para si, correndo o risco inafastável de fracasso. Atingir os objetivos, sejam quais forem, significa que o "empresário" teve "lucro".

Assim é a vida.

No plano mais restrito da economia, empresário é basicamente aquele que compra barato para vender mais caro, fenômeno denominado no jargão econômico de arbitragem. Isso vale tanto para o comerciante que compra a mercadoria pronta do produtor para revendê-la ao consumidor, quanto para o industrial que adquire os serviços dos fatores de produção (trabalho, capital e recursos naturais) para transformá-los em bens de consumo. Mas isso não seria exploração? Não. O que acontece é que os consumidores raramente sabem onde estão e quanto custam os produtos pelos quais possam vir a se interessar. Em muitos casos, os consumidores ignoram até a própria existência de muitos bens e serviços, daí a função social da propaganda comercial, que é a de prover informação sobre a existência, preço, qualidade e locais onde se pode encontrar isso ou aquilo. Por outro lado, mesmo quando o consumidor sabe o que quer e pode pagar o preço, nem sempre o produto está disponível. É preciso fazer com que ele chegue ao consumidor.

As oportunidades de obter lucro satisfazendo os desejos dos consumidores estão sempre por aí, no ar, por assim dizer. Descobrir e aproveitar essas oportunidades é o que chamamos de função empresarial. Algumas pessoas possuem mais do que outras o sentido de vigilância e perspicácia para divisar essas ocasiões e a energia para aproveitá-las, ou seja, o talento empresarial, naturalmente correndo o risco do erro de avaliação e do prejuízo monetário. São esses indivíduos os empresários, do camelô da praça até o Roberto Marinho.

No episódio da infância de Janer Cristaldo, os tais comerciantes turcos, evidentemente empresários natos, carregavam suas bicicletas de mercadorias adquiridas na cidade grande e corriam para os vilarejos para revendê-las, onde encontravam consumidores prontos para comprar seus produtos sem o custo de se deslocar até outros lugares. Alguém explorava alguém? Não, pois as transações eram voluntárias e as partes se davam mutuamente por satisfeitas. Todos obtinham lucro pois, voltando ao jargão, maximizavam suas respectivas utilidades.

E o que ocorre quando a função empresarial é proibida tout court sob pena de prisão, como nos regimes coletivistas, ou gravemente turbada e obstruída, como em economias mercantilistas tipo a brasileira? Ocorre o que Cristaldo testemunhou na Romênia e o que presenciamos diariamente em nosso país: escassez desnecessária e pobreza. Naquele país comunista, as oportunidades empresariais não podiam ser exploradas. Embora houvesse milhares de consumidores ávidos por uma "loura gelada" na praia, não havia quem se dispusesse a fornecê-las por iniciativa própria. E ai de quem o fizesse! Que contraste com as praias brasileiras, onde a livre iniciativa e a função empresarial são permitidas (até certo ponto)! É uma profusão de vendedores de todo tipo de coisas. E a tradicional cervejinha nunca falta.

Mas em países como o Brasil a função empresarial é estorvada de mil formas pelo Estado, sobretudo entre os mais pobres, o que resulta em pobreza desnecessária (e, logo, imoral). O economista peruano Hernando de Soto vem pesquisando há anos os processos pelos quais os governos embaraçam os empresários, e os efeitos desastrosos dessas políticas. O resultado desse brilhante trabalho está disponível para o público, leigo inclusive, em dois livros. No primeiro, "El Otro Sendero", de Soto investiga os fatos em seu próprio país, enquanto que no segundo livro, "Los Misterios del Capital" (ambos traduzidos e publicados por aqui) ele amplia sua perspectiva para o mundo todo. No Peru, como no Brasil e alhures, as leis e regulamentos ininteligíveis e contraditórios de um lado e os tributos e encargos "sociais" extorsivos de outro geram obstáculos artificiais quase intransponíveis à atividade empresarial, principalmente entre os empresários humildes, que não têm como pagar os custos de operar legalmente, e ocasionalmente nem as propinas para funcionar ilegalmente. A consequência é a formação de vastos "setores informais" nas economias desses países, nos quais se trabalha e produz à margem da ordem jurídica. Sem esses mercados negros aliás, dezenas de milhões de pessoas simplesmente não teriam como trabalhar e seriam condenados à fome. Os empresários e proprietários pobres ficam impedidos de negociar no mercado formal, abrindo contas bancárias e regularizando suas empresas no registro comercial, por exemplo, pois não possuem títulos de propriedade nem licenças e que tais. Assim, empreendimentos e empresários promissores são mantidos desnecessariamente na clandestinidade e impedidos de produzir, crescer e se desenvolver. Produzindo-se menos, consome-se menos também. E as consequências de ordem moral são terríveis, pois o sentimento difuso de opressão e injustiça resultante só pode produzir uma ordem social viciada e instável. Como a nossa.

Para variar, é o Estado e os grupos – sobretudo os intelectuais - que se servem dele para explorar os incautos, o culpado por essa situação. O governo é uma espécie de Midas ao avesso, pois onde quer que se meta a atuar na economia, proibindo no todo ou em parte a função empresarial, transforma abundância potencial e maximização da satisfação individual em escassez e insatisfação permanentes. Quem se preocupa sinceramente com a dolorosa pobreza de grande parte dos brasileiros deve lutar para que a função empresarial seja desonerada e libertada das cadeias estatais. Não há outra saída.

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Conforme apresentação de Olavo de Carvalho "Alceu Garcia não existe. É o pseudônimo de um cidadão que, cercado de esquerdistas por todos os lados, e já conhecendo o tratamento que eles dão a quem ouse contrariá-los no local de trabalho, tem bons motivos para desejar permanecer incógnito. Camuflado ou não, é um excelente escritor (...)."

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Digressões sobre a definição de dinheiro

por F. A. Hayek (capítulo 10 do livro Desestatização do Dinheiro)

Costuma-se definir dinheiro como o meio de troca geralmente aceito, mas não há razão para que, dentro de uma determinada comunidade, deva haver apenas um tipo de dinheiro que seja geralmente (ou pelo menos amplamente) aceito.  Na cidade austríaca fronteiriça com a Alemanha em que vivo há alguns anos, os comerciantes, bem como a maior parte dos outros empresários, aceitam, com a mesma facilidade, marcos alemães ou xelins austríacos, e é somente a lei que impede que os bancos alemães em Salzburgo efetuem suas transações em marcos alemães, da mesma maneira que o fazem a dez milhas de distância, no lado alemão da fronteira.  O mesmo se pode dizer de centenas de outros centros turísticos na Áustria, frequentados principalmente por alemães.  Na maioria deles, os dólares serão também aceitos quase que com a mesma facilidade que os marcos alemães.  Creio que a situação não é muito diversa em ambos os lados de longos trechos de fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá ou México, e provavelmente ao longo de muitas outras fronteiras.

No entanto, embora em tais regiões todos possam estar dispostos a aceitar várias moedas à taxa de câmbio do dia, indivíduos podem usar diferentes tipos de dinheiro para guardar (como reservas líquidas), visando a contratos de pagamentos futuros, ou para fins contábeis, e a comunidade pode responder da mesma maneira às alterações na quantidade das diferentes moedas.

Quando falamos em diferentes tipos de dinheiro, temos em mente unidades de diferentes denominações, cujos valores relativos podem oscilar uns em relação aos outros.  A oscilação desses valores deve ser enfatizada por não ser a única maneira de distinguir os meios de troca uns dos outros.  Também podem, esses valores, ser bastante diferenciados, mesmo quando expressos em termos da mesma unidade, pelo seu grau de aceitação (ou liquidez, isto é, na própria qualidade que os faz serem dinheiro), ou em termos dos grupos de pessoas que prontamente os aceitam.  Isso significa que diferentes tipos de dinheiro podem distinguir-se uns dos outros em mais de uma dimensão.

Não há distinção clara entre dinheiro e não dinheiro

Isso também significa que — embora habitualmente se aceite o fato de que existe uma clara linha divisória entre o que é e o que não é dinheiro, e a lei geralmente tente estabelecer essa distinção —, quando se trata dos efeitos causadores de eventos monetários tal diferença não é tão clara.  O que encontramos é, ao contrário, um continuum em que objetos com vários graus de liquidez, ou com valores que podem oscilar independentemente, se confundem um com o outro quanto ao grau em que funcionam como dinheiro.

Sempre considerei útil explicar a meus alunos que é pena qualificarmos o dinheiro como substantivo, e que seria mais útil para a compreensão dos fenômenos monetários se "dinheiro" fosse um adjetivo descrevendo uma propriedade que diferentes objetos poderiam possuir, em graus variados.  "Moeda corrente" é, por esse motivo, uma expressão mais adequada, uma vez que objetos podem ter curso, em graus variáveis, e em diferentes regiões ou setores da população.

Pseudo-exatidão, medida estatística

Defrontamo-nos, agora, com a dificuldade de explicar os fenômenos da vida econômica que ainda não foram bem definidos.  A fim de simplificar nossa explanação, evitando interconexões muito complexas que, de outra forma, se tornariam muito difíceis de acompanhar, introduzimos distinções nítidas entre os atributos dos objetos, atributos esses cujas diferenças, na vida real, não são assim tão nítidas, mas apenas graduais.  É o que ocorre quando tentamos estabelecer uma distinção muito clara entre objetos tais como bens e serviços, bens de consumo e bens de capital, bens duráveis e perecíveis, renováveis e não renováveis, específicos e versáteis, substituíveis e não substituíveis.  Todas essas distinções são muito importantes, mas podem ser muito enganosas se, na popular luta pela pseudoexatidão, tratarmos essas classes com quantidades mensuráveis.  Está aí uma simplificação que talvez seja ocasionalmente necessária, mas que é sempre perigosa e tem favorecido muitos erros em economia.  As diferenças, embora sejam importantes, não significam que seja possível separar, claramente e sem ambiguidade, essas coisas em duas ou mais classes distintas.  Frequentemente o fazemos e, muitas vezes, talvez, precisemos falar como se essa divisão fosse verdadeira.  Mas esse costume pode ser muito ilusório e levar a conclusões totalmente errôneas.

Ficções legais e teoria econômica deficiente

De maneira semelhante, a ficção legal de que há uma coisa claramente definida chamada "dinheiro" que se pode distinguir inequivocamente de outras coisas, ficção essa introduzida para facilitar o trabalho do advogado ou do juiz, nunca foi nem será verdadeira, na medida em que seja necessário fazer referência a coisas que produzem os efeitos característicos de eventos ligados ao dinheiro.  Essa ficção, contudo, causou muito mal, por conduzir à exigência de que, para determinados fins, só se possa empregar o "dinheiro" emitido pelo governo, ou de que deva sempre haver algum tipo de objeto único que possa ser considerado como o "dinheiro" do país.  Levou também, como veremos, ao desenvolvimento, na teoria econômica, de uma explicação do valor de unidades monetárias que em nada contribui para solucionar os tipos de problemas que pretendemos examinar aqui, muito embora apresentem pressuposições simplificadas que nos permitem algumas aproximações simples.

Para podermos prosseguir, será importante ter em mente que diferentes tipos de dinheiro podem diferir um do outro em duas dimensões distintas, embora não totalmente estanques: aceitação (ou liquidez) e o comportamento esperado (estabilidade ou variabilidade) de seu valor.  A expectativa de estabilidade evidentemente afetará a liquidez de um tipo particular de dinheiro, mas pode ser que, a curto prazo, a liquidez seja, às vezes, mais importante que a estabilidade, ou que a aceitação de um dinheiro mais estável possa, por algum motivo, ser restrita a círculos bastante limitados.

Significados e definições

Talvez seja esse o lugar mais conveniente para acrescentar afirmações explícitas sobre as acepções em que usaremos outros termos que ocorrem com frequência.  Terá ficado claro que, no presente contexto, é mais prático falar de "moedas correntes" do que de "dinheiros", não só porque é mais fácil usar o primeiro termo no plural, mas também porque, como vimos, o termo "moedas correntes" enfatiza um determinado atributo.  Também empregaremos a expressão "moedas correntes", talvez indo um pouco contra a acepção original do termo, de forma a incluir não somente papéis e qualquer outro tipo de dinheiro "que corre de mão em mão", mas também saldos bancários sujeitos a cheque e outros meios de troca que podem ser usados para a maioria dos fins para os quais se usam cheques.  Não há, porém, como acabamos de assinalar, qualquer necessidade de uma distinção pronunciada entre o que é e o que não é dinheiro.  Será melhor que o leitor permaneça cônscio de que temos de lidar com um conjunto de objetos que tem um grau variado de aceitabilidade, e que se confundem, na faixa inferior, com objetos que claramente não são dinheiro.

Embora frequentemente façamos referência às instituições que emitem moeda corrente simplesmente como "bancos", isto não quer dizer que todos os bancos deverão emitir dinheiro.  O termo "taxa cambial" será usado em todo o texto em relação a taxas de câmbio entre moedas; e o termo "bolsa de moedas correntes" (análogo a bolsa de valores), para o mercado organizado de moedas correntes.  Ocasionalmente, falaremos também em "substitutos do dinheiro", quando tivermos que examinar casos limítrofes na escala de liquidez — tais como cheques de viagem, cartões de crédito e saque bancário a descoberto — em relação aos quais seria arbitrário afirmar que são ou não são parte do meio circulante.

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Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais".

domingo, 17 de julho de 2011

Mises não era um excêntrico em seu tempo

Nota introdutória: Hoje o debate em torno da ciência econômica - encastelado nas universidades ou não - é amplamente dominado pelo referencial metodológico positivista/empirista. Quando os adeptos do mainstream se deparam com argumentos calcados no apriorismo, não exitam em rotular o interlocutor de não-científico, excêntrico, esotérico e até mesmo de "irresponsável".

O texto abaixo, extraído de A ciência econômica e o método austríaco (H-H. Hoppe), mostra como Mises simplesmente expressou com outros termos a metodologia amplamente aceita em seu tempo. Ao sistematizar a lógica da ação humana (praxeologia) utilizando o apriorismo, o famoso economista austríaco apenas estava avançando numa trilha iniciada por outros pensadores inseridos numa longa tradição científico-filosófica.

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O que levou Mises a caracterizar a economia como uma ciência a priori? Se levarmos em conta o panorama atual pode parecer surpreendente vir à saber que Mises não considerava que seu conceito estivesse desalinhado com a visão predominante do começo do século XX. Mises não quis prescrever um comportamento aos economistas oposto àquele que eles já tinham. Ao contrário, ele considerou suas realizações como as de um filósofo da ciência econômica, ao sistematizar, e deixar explícito o que a ciência econômica realmente era, e como ela houvera sido implicitamente concebida por praticamente todos aqueles que se consideravam economistas.

E isto realmente era verdade. Ao dar uma explicação sistemática ao que até então era formalmente apenas implícito e não declarado, Mises introduziu algumas distinções conceituais e terminológicas que antes eram obscuras e desconhecidas, ao menos para o mundo anglófono. Porém, sua posição sobre o status da ciência econômica era em sua essência totalmente compatível com a visão, naquele tempo, ortodoxa sobre o assunto. Eles não empregavam o termo "a priori", mas os economistas da corrente dominante como Jean Baptiste Say, Nassau Senior, e John E. Cairnes, por exemplo, descreviam a ciência econômica de modo muito similar.

Say escreveu: "Um tratado sobre economia política estará ... confinado a enunciação de uns poucos princípios, que sequer precisam ser sustentados por provas ou ilustrações; pois eles não serão nada além da expressão daquilo que todo mundo conhecerá, organizado de uma forma conveniente para compreendê-los, assim como em seu escopo integral e suas relações". E "a economia política ...  sempre que os princípios que constituem suas bases forem as deduções rigorosas de fatos comuns inegáveis, estará baseada sobre uma fundação imóvel".

De acordo com Nassau Senior, "as premissas [econômicas] consistem de algumas proposições gerais, do resultado de observações, ou da consciência, e dificilmente requerem provas, ou mesmo uma declaração formal, as quais quase todo homem, tão logo ele as escute, reconhece como familiares a seus pensamentos, ou pelo menos como já presentes em seu conhecimento anterior; e suas deduções são praticamente gerais, e, se ele raciocinou direito, tão certas quanto suas premissas". E os economistas deveriam estar "cientes que a ciência depende mais da razão do que da observação, e que sua principal dificuldade não é a averiguação de seus fatos, e sim o uso de seus termos".

E John E. Cairnes observa que enquanto "a raça humana não possui nenhum conhecimento direto dos princípios físicos definitivos" ... "os economistas já começam com um conhecimento das causas definitivas" ... "Deste modo, no começo de sua pesquisa, pode ser considerado que o economista já conhece aqueles princípios definitivos que regem os fenômenos que constituem o assunto de seu estudo, a descoberta que é a tarefa mais árdua para o inquiridor das investigações físicas". "O ato de presumir [na economia] claramente seria algo sem propósito, visto que possuímos em nossa consciência e no testemunho de nossos sentidos... prova clara e direta daquilo que queremos saber. Conseqüentemente, em Economia Política as hipóteses nunca são usadas como uma ajuda para se chegar a descoberta de causas e leis definitivas."

As opiniões de Menger, Böhm-Bawerk e Wieser, predecessores de Mises, eram iguais: Eles também definiam a ciência econômica como uma disciplina em que as proposições - em contraste com as das ciências naturais - podem receber alguma justificação definitiva. No entanto, eles novamente fazem isto sem empregar a mesma terminologia usada por Mises.

E finalmente, a caracterização epistemológica da ciência econômica feita por Mises também foi considerada bastante ortodoxa - e com certeza nada exclusiva, como Blaug a teria considerado - após ter sido explicitamente formulada por Mises. O livro de Lionel Robbins The Nature and Significance of Economic Science, que foi lançado em 1932, nada mais é do que uma versão de certa forma suavizada da descrição que Mises faz da ciência econômica como praxeologia. Não obstante ele foi respeitado pelos economistas profissionais como a estrela guia metodológica por quase vinte anos.

Extraído de A ciência econômica e o método austríaco, pág. 11-13.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Os muitos eufemismos para criação de dinheiro

por Thorsten Polleit (originalmente publicado em janeiro de 2011)

Linguagem confusa, pensamento confuso

De acordo com os ensinamentos do filósofo grego Parmênides, a linguagem ilustra o pensamento humano (e o raciocínio). Linguagem confusa é, portanto, equivalente a pensamento confuso; pensamento confuso, por sua vez, provoca ações não intencionais e resultados não desejados. [1]

“Linguagem dupla” (doublespeak) – um termo que ganhou destaque por meio do trabalho de Eric Blair (1903-1950), mais conhecido como George Orwell – é uma forma notável de linguagem e pensamento confusos. O termo era, na verdade, derivado dos termos “novilíngua” (newspeak) e “duplipensamento” (doublethink), os quais Orwell usou em seu romance 1984, publicado em 1949 [2]. Enquanto estava sob a instrução supressiva do Partido, a mente do protagonista, Winston Smith,

mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica,repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar. [3]
Um eufemismo é uma forma de linguagem dupla: é um artifício retórico às vezes utilizado intencionalmente e às vezes não – um paliativo linguístico, o que representa uma distorção da verdade – em muitos casos empregado para evitar uma ofensa às pessoas. Na vida real, eufemismos podem ser utilizados por alguns para tentar legitimar ações que vão contra o interesse de outros. Nesse sentido, eufemismos representam uma “manipulação da linguagem” e uma “manipulação por meio da linguagem”.

Eufemismos na esteira da crise de crédito


Desde a eclosão da chamada crise internacional dos mercados de crédito, eufemismos têm tido grande destaque. Isso é válido, em particular, para os especialistas em política monetária, que devotam grande esforço para propagandear uma variedade de medidas políticas como sendo de interesse do bem comum, uma vez que elas supostamente combateriam a crise de crédito. Considere os seguintes exemplos:



1. A expressão “política monetária não convencional” retrata a ação do banco central a partir de uma perspectiva bastante favorável [4]. O adjetivo “convencional” significa “hereditário” e “obsoleto”, enquanto “não convencional” pode sugerir algo na linha de uma ação “corajosa” e “inovadora”.


2. Usar a expressão “política monetária agressiva” funciona do mesmo modo [5]. Por exemplo, ela geralmente se refere a um corte drástico nas taxas de juros oficiais em direção a níveis de baixa recorde, ou a uma grande elevação na oferta de moeda à luz de uma recessão que se aproxima, transmitindo a idéia de que os formuladores de política tomam medidas “ousadas” e “corajosas” para o bem comum.


3. O termo “quantitative easing” faz com que seja muito mais difícil, até mesmo impossível (para o grande público), desvendar o que tal política monetária realmente é – ou seja, uma política de crescimento da oferta monetária (dinheiro criado do nada), a qual, por sua vez, é o mesmo que uma política inflacionista. [6]


4. Falar sobre uma “política monetária de juros baixos” escamoteia o fato de que a política monetária empurra a taxa de juros de mercado abaixo da taxa natural de juros (a taxa de preferência intertemporal da sociedade), o que necessariamente leva a maus investimentos, em vez de inaugurar uma recuperação econômica.


5. “Neutralização do aumento da base monetária” é claramente enganador, já que um crescimento no estoque de dinheiro não é e nunca poderá ser neutro. Ele é necessariamente acompanhado por efeitos redistributivos – independentemente de os receptores da injeção de dinheiro adicional (que foi criado do nada) deterem esses saldos como “reserva legal” ou na forma de, digamos, depósitos a prazo[7].


6. Referir-se à "ampla liquidez" (como um fator que contribui para a "crise de crédito") tende a encobrir o fato de que os bancos centrais têm inflacionado a oferta de moeda (por meio da expansão de crédito de circulação bancária).[8] O termo "liquidez" tende a disfarçar o fato de que as condições monetárias desfavoráveis são um resultado da ação dos bancos centrais.


Um bom exemplo de um recente eufemismo no campo da política monetária foi o anúncio feito pelo Conselho Governamental do Banco Central Europeu (BCE), no dia 10 de maio de 2010, dizendo que ele iria:
intervir no mercado mobiliário da dívida pública e privada na zona do euro (Programa de Mercados Mobiliários) para assegurar profundidade e liquidez naqueles seguimentos de mercado que são disfuncionais. O objetivo deste programa é abordar o mau funcionamento do mercado mobiliário e restaurar um mecanismo de transmissão de política monetária apropriado. [9]
Tal política monetária pode ser vista como um subsídio aos preços dos títulos de alguns governos emitentes na zona do euro – ou seja, aqueles que são cada vez mais vistos como insolventes pelos investidores –, favorecendo, portanto, alguns emitentes (e investidores detentores desses títulos) à custa de outros.


Na prática, essa política será algo semelhante a uma política de preços mínimos para os títulos de alguns governos emitentes quando o banco central fizer compras que mantenham os preços de certos títulos acima daqueles que, de outra forma, teriam prevalecido.


Linguagem confusa, resultados não desejados


Com os especialistas em política monetária fazendo uso crescente de linguagem confusa, as forças corretivas contra políticas monetárias perniciosas são enormemente reduzidas. Isso acontece porque uma linguagem confusa – e seu resultado, pensamento confuso – faz com que se torne cada vez mais difícil para o público entender as conseqüências a médio e longo prazo das medidas adotadas; e tal entendimento é claramente necessário para resistir às políticas danosas.


O uso perpétuo de linguagem confusa pode resultar em conseqüências sociais que, na verdade, são desejadas por poucos. Considere o caso de uma progressiva expansão do governo. A razão pela qual o aparato estatal continua crescendo à custa do setor privado é, principalmente, devido à aquisição, por parte do governo, do controle total da produção de dinheiro. Detendo o monopólio da oferta de dinheiro, o governo pode elevar a oferta por meio da expansão de crédito sem base em poupança alguma. 


Com a criação de dinheiro, o governo pode aumentar – e realmente o faz – seus gastos muito além do montante que os pagadores de impostos estão preparados para entregar ao estado. Como resultado, mais e mais pessoas tornam-se dependentes dos gastos do governo (algumas até de forma voluntária), seja como servidores públicos, fornecedores do governo, ou destinatários de pensões, saúde, educação e segurança pública.


Cedo ou tarde a dependência da ajuda governamental alcança, e até ultrapassa, um nível crítico. Dessa forma, as pessoas verão uma política monetária de constantes aumentos na oferta de dinheiro como sendo mais favorável do que se o governo decretasse calote em suas dívidas, o que iria extinguir qualquer esperança de receber benefícios do estado no futuro. Em outras palavras, a política inflacionária, ou mesmo hiperinflacionária, será vista como a política do mal menor.


Graças à linguagem dupla dos especialistas em política monetária, a utilização de políticas monetárias que levam a uma alta inflação pode não ser percebida pelo grande público. A política monetária pode, portanto, ser desencadeada de forma que o público não concorde caso seja informado de suas consequências a médio e longo prazo.


Como resultado, há uma forte razão para temer que a confusa linguagem orwelliana e o pensamento confuso que ela produz pavimentem o caminho para a hiperinflação.


Thorsten Polleit é Professor Honorário da Escola de Finanças e Administração de Frankfurt.


Notas:


[1] Nota do Editor: as datas de nascimento e morte de Parmênides são objeto de debate. Ele provavelmente escreveu a maior parte de sua obra antes do ano 500 A.C.


[2] Note que o termo “linguagem dupla” não aparece em nenhum lugar na obra de Orwell, 1984.


[3] Orwell, G. 1984. Tradução de Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005, p. 36-37.


[4] A expressão pode ser encontrada frequentemente na mídia financeira. De qualquer forma, ela também é utilizada na literatura acadêmica. Veja, por exemplo, Curdia, V., Woodford, M. (2010), Conventional and Unconventional Monetary Policy. In: Federal Reserve of St. Louis Review, jul./ago., 92(4), p. 229–264. Deve-se notar que, no último artigo, os autores não apresentam nenhuma definição do que realmente querem dizer com “política monetária não convencional”. Uma definição de tipos pode ser encontrada em Bini Smaghi, L., Conventional and unconventional monetary policy, conferência principal no International Center for Monetary and Banking Studies (ICMB), Gênova, 28 abr. 2009: “As ferramentas não convencionais incluem uma grande quantidade de medidas destinadas a facilitar as condições de financiamento.” No entanto, tal definição basicamente inclui todos os tipos de medidas políticas:
Tendo ao seu dispor essas opções de possíveis medidas políticas– as quais não são mutuamente exclusivas – os formuladores de política monetária têm que definir, de forma clara, os objetivos intermediários de suas políticas não convencionais. Estes podem variar desde o provimento de liquidez adicional do banco central aos bancos ou até mesmo atacar diretamente a escassez de liquidez e spreads de crédito em certos segmentos de mercado. Os formuladores de política, então, têm que selecionar as medidas que melhor se ajustam àqueles objetivos.
[5] Veja, por exemplo, Bank for International Settlement, 80º Relatório Anual, 28 jun. 2010, p. 36.


[6] "Quantitative easing" é um crescimento na oferta da base monetária, uma política monetária adotada no caso de a taxa de juros oficial atingir zero porcento. O termo se tornou público pelo Banco do Japão, que adotou a política de quantitative easing, de março de 2001 a março de 2006. Veja, por exemplo, Ugai, H., Effects of the Quantitative Easing Policy: A Survey of Empirical Analyses, Série de Documentos do Banco do Japão, n. 6, jul. 2006.


[7] Por exemplo, o presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, disse antes do Comitê de Negócios Econômicos e Monetários do Parlamento Europeu, em 21 de junho de 2010:
Como o objetivo do programa não é injetar liquidez adicional no sistema bancário, nós neutralizamos completamente a aquisição de títulos por meio de operações específicas de reabsorção. Como resultado, o nível existente de liquidez e as taxas do mercado monetário não são afetados pelo programa. Em outras palavras, a nossa postura de política monetária não é afetada, e não há riscos inflacionários relacionados a esse programa.
[8] A ampla liquidez tornou-se um termo muito usado. Veja, por exemplo, Bank of France Bulletin Digest, n. 158, fev. 2007, p. 1–2; e também Hirose, Y., Ohyama, S., Taniguchi, K., Identifying the Effect of Bank of Japan's Liquidity Provision on the Year-End Premium: A Structural Approach, Série de Documentos do Banco do Japão, n. 9, E6, dez. 2009.


[9] Declaração do BCE à imprensa: "BCE decide sobre as medidas para enfrentar graves tensões nos mercados financeiros", 10 de maio de 2010.


[10] Note que há uma relação reversa entre o preço do título e seu retorno: se a taxa de juros de mercado sobe (cai), o preço do título cai (sobe). Então, uma política de preços mínimos é essencialmente o mesmo que uma política de taxa máxima de juros.


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Tradução de Marcelo Aguiar Cerri e Raysa Sales