sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Economia e imaginação


por Daniel Marchi (publicado originalmente na 3a. edição da Revista Vila Nova)

É difícil existir outra área do conhecimento mais aberta que as ciências econômicas. Nenhuma surpresa. Várias vezes ao dia nos vemos engajados em algum negócio, seja tomando um cafezinho seja fechando grandes transações financeiras. E mais, somos bombardeados com notícias sobre economia o tempo todo. É um convite irresistível para debates, às vezes bem acalorados, envolvendo as teses e opiniões de cada um acerca desse instigante assunto. Afinal de contas, todo brasileiro é Ministro da Fazenda e técnico da seleção nacional de futebol.

Nas discussões um pouco mais sofisticadas, as pessoas frequentemente utilizam argumentos racionais (teoria) ilustrados por exemplos práticos. É pré-requisito indispensável em qualquer exercício racional que os interlocutores sejam capazes de construir relações abstratas, erguidas sobre os alicerces dos princípios lógicos, especialmente da lógica da ação humana quando o assunto é Economia. Em outras palavras, é preciso pensar, elucubrar. Nos parágrafos posteriores tentarei enfatizar o quão importante é o uso da imaginação nas análises econômicas.

Frédéric Bastiat, jornalista e economista francês do século XIX, brilhantemente apontou a importância daquilo que não é captado imediatamente pelos olhos. Em seu famoso ensaio O que se vê e o que não se vê, facilmente acessível na internet, Bastiat explora a chamada “falácia da vidraça quebrada”. Diante de uma vitrine quebrada por um enfant terrible, um grupo de adultos consola o dono da loja, argumentando que aquele incidente, à primeira vista negativo, seria convertido em benefícios para a comunidade. O proprietário compraria uma nova vidraça, beneficiando o vidraceiro, que por sua vez teria sua renda aumentada, podendo gastá-la com outros bens e serviços, provocando uma espécie de reação em cadeia positiva para todos. O garoto, aproveitando um termo muito em voga em nosso tempo, teria gerado um “estímulo” à economia local, segundo as testemunhas.

Eis que Bastiat desmonta a pegadinha. Sim, é verdade que o vidraceiro foi beneficiado com um novo pedido, e que esta renda pôde ser gasta com outros produtos, de outros indivíduos. Isso é o que se vê. Mas o lojista perdeu uma vidraça... Caso ela não fosse quebrada, o proprietário poderia desembolsar aquele valor em outras benfeitorias, por exemplo instalando mais prateleiras no estabelecimento. O mesmo processo de circulação de recursos seria desencadeado, com a diferença que a comunidade teria mais bens disponíveis. Isso é o que não se vê. O autor francês mostra, no final das contas, o quão importante são as abstrações do tipo “e se...”, sempre apoiadas pela lógica da ação, essa magnífica ferramenta da razão humana.

Vejamos outra aplicação da mesma técnica. Quando os mercados são entendidos como processos dinâmicos, impulsionados pelo incansável trabalho dos empresários, a mera capacidade de abstrair fenômenos é fundamental para compreender as forças importantíssimas numa economia livre. Por exemplo, é pertinente dizer que não é satisfatório enxergar a concorrência nos mercados apenas pelo número de empresas neles atuantes, ou seja, por aquilo que se vê. Existem setores com vários ofertantes e baixa concorrência; por outro lado, há casos com apenas uma firma em campo e que constantemente procura melhorar seus produtos e atender melhor seus clientes, comportamento típico de mercados com acirrada competição. Nesse sentido, uma abordagem que contemple a idéia de concorrência potencial tem maior capacidade descrever a realidade.

A possibilidade de ter seu quinhão contestado leva os empresários a agirem como se estivessem sob competição efetiva. Lucros altos e consumidores relativamente insatisfeitos funcionam como sinalizadores para que empreendedores e investidores direcionem recursos para o setor em questão. Um caso emblemático é o famoso site de pesquisas Google. Apesar de concentrar mais de 90% das pesquisas feitas na rede, a empresa continuamente procura melhorar seus produtos e serviços. Benevolência? Não, concorrência potencial. Como a internet é um dos últimos rincões de plena liberdade de investimento, quem faz dela seu ganha-pão sabe que deve estar um passo à frente de seus concorrentes, ainda que efetivamente eles possam não existir.

Os resultados esperados da competição (preços declinantes, incremento na qualidade etc) dependem, nesse sentido, mais da possibilidade de entrada de novos investidores nos mercados do que o número de empresas em si. A liberdade de realização de novos investimentos, por sua vez, relaciona-se com a ausência de barreiras institucionais e burocráticas. Num breve parêntese, é interessante notar como grandes empresas estabelecidas não veem com maus olhos a progressiva regulamentação que os governos mundo a fora têm promovido. A regulamentação dos mercados acaba por protegê-las, dificultando a entrada de novos concorrentes. Mais uma vez, é preciso considerar aquilo que não se vê.

Henry Hazlitt, em seu clássico Economia Numa Única Lição, de forma muito perspicaz postulou que “a arte da economia está em considerar não só os efeitos imediatos de qualquer ato ou política, mas, também, os mais remotos; está em descobrir as consequências dessa política, não somente para um único grupo, mas para todos eles.” No atual cenário de crescente intervencionismo e de noticiário econômico muitas vezes confuso, os ensinamentos de Bastiat e Hazllitt são cada vez mais importantes. Na próxima conversa com seus amigos, fique atento com aquilo que os olhos não enxergam. Pense nisso e use sua imaginação.

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Daniel Marchi é economista e membro-fundador do Grupo de Estudos da Escola Austríaca de Brasília, DF. E-mail: danielmarchi@gmail.com