quinta-feira, 30 de junho de 2011

A revolta contra a razão

por Ludwig von Mises (extraído de "Ação Humana", capítulo 3)

Houve, ao longo da história, filósofos que não hesitaram em superestimar a capacidade da razão. Supunham que o homem fosse capaz de descobrir, pelo raciocínio, as causas originais dos eventos cósmicos ou os objetivos que a força criadora do universo, determinante de sua evolução, pretendia alcançar. Discorreram sobre o "absoluto" com a tranquilidade de quem descreve o seu relógio de bolso. Não hesitaram em anunciar valores eternos e absolutos nem em estabelecer códigos morais que deveriam ser respeitados por todos os homens.

Houve também uma longa série de criadores de utopias. Imaginavam paraísos terrestres onde só prevaleceria a razão pura. Não percebiam que aquilo que consideravam como razões finais ou como verdades manifestas eram tão somente fantasia de suas mentes. Consideravam-se infalíveis e, com toda tranquilidade, defendiam a intolerância e o uso da violência para oprimir dissidentes e heréticos. Preferiam a implantação de um regime ditatorial, ou para si mesmo, ou para aqueles que se dispusesse a executar fielmente os seus planos. Acreditavam que essa era a única forma de salvação para uma humanidade sofredora.

Houve Hegel. Certamente foi um pensador profundo; suas obras são um rico acervo de ideias estimulantes. Não obstante, escreveu sempre dominado pela ilusão de que Geist, o Absoluto, revelava-se por seu intermédio. Não havia nada no universo que não estivesse ao alcance da sabedoria de Hegel. Pena que sua linguagem fosse tão ambígua, a ponto de ensejar múltiplas interpretações. Os hegelianos de direita entenderam-na como um endosso ao sistema prussiano de governo autocrático, bem como aos dogmas da igreja prussiana. Os hegelianos de esquerda extraíram de suas teorias o ateísmo, o radicalismo revolucionário mais intransigente e doutrinas anarquistas.

Houve Augusto Comte. Pensava conhecer o futuro que estava reservado para a humanidade. E, portanto, considerava-se o supremo legislador. Pretendia proibir certos estudos astronômicos, por considerá-los inúteis. Planejava substituir o cristianismo por uma nova religião e chegou a escolher uma mulher para ocupar o lugar da Virgem. Comte pode ser desculpado, já que era louco, no sentido mesmo com que a patologia emprega este vocábulo. Mas como desculpar os seus seguidores?

Muitos outros exemplos deste tipo poderiam ser enumerados. Mas não podem ser usados como argumentos contra a razão, o racionalismo ou a racionalidade. Tais desvarios não têm nada a ver com o problema essencial que consiste em procurar saber se a razão é ou não o instrumento adequado e único de que dispõe o homem para obter tanto conhecimento quanto lhe seja possível. Aqueles que, honesta e conscienciosamente, procuram a verdade jamais pretenderam que a razão e a pesquisa científica possam responder a todas as questões.

Sempre tiveram plena consciência das limitações da mente humana. Não podem ser responsabilizados pela tosca filosofia de um Haeckel, nem pelo simplismo de diversas escolas materialistas.

Os filósofos racionalistas sempre estiveram preocupados em mostrar tanto os limites da teoria apriorística quanto os da investigação empírica. David Hume, o fundador da economia política inglesa, os utilitaristas e os pragmatistas americanos não podem ser acusados de haver superestimado a capacidade do homem para alcançar a verdade. Seria mais justificável acusar a filosofia dos últimos duzentos anos de um excesso de agnosticismo e de cepticismo do que de um excesso de confiança no que poderia ser alcançado pela mente humana.

A revolta contra a razão, atitude mental típica de nossa época, não se origina na falta de modéstia, cautela ou autocrítica por parte dos filósofos. Tampouco pode ser atribuída a falhas na evolução da moderna ciência natural. Ninguém pode ignorar as fantásticas conquistas da tecnologia e da terapêutica. É inútil atacar a ciência moderna, seja do ponto de vista do intuicionismo e do misticismo, seja de qualquer outro ângulo. A revolta contra a razão foi dirigida para outro alvo. Não tinham em mira as ciências naturais, e sim a economia. O ataque às ciências naturais foi uma consequência lógica e natural do ataque à economia. Seria inconcebível impugnar o uso da razão em um determinado campo do conhecimento, sem impugná-lo também nos demais.

Esta insólita reação teve sua origem na situação existente em meados do século XIX.

Os economistas já tinham, naquela época, demonstrado cabalmente que as utopias socialistas não passavam de ilusões fantasiosas. Entretanto, as deficiências da ciência econômica clássica os impediram de compreender por que qualquer plano socialista é irrealizável; mas eles já sabiam o suficiente para demonstrar a futilidade dos programas socialistas. As ideias comunistas já estavam derrotadas. Os socialistas não tinham como responder às devastadoras críticas que lhes eram feitas, nem como aduzir qualquer argumento novo em seu favor.Parecia que o socialismo estava liquidado, e para sempre.

Só havia um caminho para evitar a derrocada: atacar a lógica e a razão e substituir o raciocínio pela intuição mística. Estava reservado a Karl Marx o papel histórico de propor esta solução. Com base no misticismo dialético de Hegel, Marx, tranquilamente, arrogou-se a capacidade de predizer o futuro. Hegel pretendia saber que Geist, ao criar o universo, desejava instaurar a monarquia de Frederico Guilherme III. Mas Marx estava mais bem informado sobre os planos de Geist: havia descoberto que a evolução histórica nos conduziria, inevitavelmente, ao estabelecimento do milênio socialista. O socialismo estava fadado a acontecer "com a inexorabilidade de uma lei da natureza". E como, segundo Hegel, cada fase ulterior da história é melhor e superior do que a que a antecedeu, não cabia nenhuma dúvida de que o socialismo, a etapa final da evolução da humanidade, seria perfeito sob todos os aspectos. Assim sendo, resultava inútil a discussão dos detalhes do funcionamento de uma comunidade socialista. A história, no devido tempo, disporia todas as coisas da melhor maneira; e para isso não necessitava da ajuda dos homens, meros seres mortais.

Mas havia ainda um obstáculo principal a superar: a crítica devastadora dos economistas. Marx, entretanto, já tinha uma solução para superar este obstáculo. A razão humana, afirmava ele, por sua própria natureza, não tem condições de descobrir a verdade. A estrutura lógica da mente varia segundo as várias classes sociais. Não existe algo que se possa considerar como uma lógica universalmente válida. A mente humana só pode produzir "ideologias", ou seja, segundo a terminologia marxista, um conjunto de ideias destinadas a dissimular os interesses egoístas da classe social de quem as formula. Portanto, a mentalidade "burguesa" dos economistas é absolutamente incapaz de produzir algo que não seja uma apologia ao capitalismo. Os ensinamentos da ciência "burguesa", que são uma consequência da lógica "burguesa", não têm nenhuma validade para o proletariado, a nova classe social que abolirá todas as classes e transformará a Terra num paraíso.

Mas, evidentemente, a lógica da classe proletária não é apenas a lógica de uma classe. "As ideias que a lógica proletária engendra não são ideias partidárias, mas emanações da lógica mais pura e simples". Mas ainda, em virtude de algum privilégio especial, a lógica de certos burgueses não estava manchada pelo pecado original de sua condição burguesa. Karl Marx, o filho de um próspero advogado, casado com a filha de um nobre prussiano, e seu colaborador Frederick Engels, um rico fabricante de tecidos, se consideravam acima de suas próprias leis e, apesar da origem burguesa, se julgavam dotados da capacidade de descobrir a verdade absoluta.

Compete à história explicar as condições que fizeram com que essa doutrina tão primária se tornasse tão popular. A tarefa da economia é outra. Compete-lhe analisar o polilogismo marxista, bem como todos os demais tipos de polilogismo formados segundo o mesmo modelo, e demonstrar suas falácias e contradições.

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Para mais informações sobre o polilogismo marxista, acessem os links abaixo.

Polilogismo: Karl Marx e os Nazistas (Ludwig von Mises)

A falácia do polilogismo (Rodrigo Constantino)

Marxismo sem polilogismo - há algo aproveitável em Marx? (Jeffrey Tucker)

El Polilogismo (vídeo de Jesus Huerta de Soto)

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Os economistas e as leis antitruste

por William L. Anderson

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OBS.: O artigo abaixo foi publicado originalmente em maio de 2000. Há pouco mais de uma década, a Microsoft sofria uma série de ações judiciais movidas por governos e outras empresas, as quais acusavam a gigante da informática de práticas anticoncorrenciais. O texto expõe os erros contidos nas chamadas leis de defesa da concorrência (ou antitruste) e na própria concepção teórica que fundamenta essas leis. De forma indireta, também apresenta as diferentes abordagens que a Escola Austríaca e a Escola de Chicago têm sobre concorrência e propriedade privada. 
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O atual debate sobre o caso Microsoft tem causado (novamente) divisão entre os economistas, mesmo entre aqueles que se julgam economistas pró livre mercado.

De um lado do campo do livre mercado estão os Austríacos e seus seguidores, os quais acreditam que leis antitrustes não têm papel algum em nossa economia, portanto, devendo ser banidas dos livros.

Do outro lado, entretanto, estão os economistas da Escola de Chicago, que parecem estar divididos em suas opiniões a respeito da Microsoft, mas concordam que deve haver algum papel para a legislação antitruste no sentido de manter as firmas "honestas".

Então temos Robert Bork, autor do livro The Antitrust Paradox, um livro que discorda bastante do ponto de vista padrão pró-antitruste, agora sendo um porta-voz pago pela rival da Microsoft, Netscape. Desde então Bork tem endossado um velho estilo de “remédio” antitruste, pedindo a dissolução da combatida gigante do software. Outros economistas da Escola de Chicago não estão convencidos, apesar de parecerem manter a visão de regras antitruste como “último recurso”.

Consideremos Thomas Sowell, por exemplo, que recebeu seu doutorado em economia em Chicago e mais tarde ensinou na Universidade da Califórnia, ensino esse baseado num profundo programa orientado pelos princípios da escola de Chicago. Ele condenou reiteradamente a decisão da Microsoft e as tentativas do Departamento de Justiça para desmembrar a empresa.

No entanto, Sowell não condenou as várias leis antitrustes, as verdadeiras culpadas, apesar de ter chegado perto dessa reprovação em suas últimas colunas.

Existem boas razões para que os Austríacos se oponham as leis antitrustes. Não só elas são propositadamente vagas, mas representam uma agressão clara do governo sobre a propriedade privada. As leis antitrustes operam da mesma forma que as leis econômicas operaram durante a década de 30 na Itália fascista e na Alemanha : elas permitem uma nacionalização de facto da empresa  privada sem que o governo seja, de direito, o proprietário.

Ludwig von Mises e Murray Rothbard da Escola Austríaca apontaram de forma enfática que a propriedade privada é essencial para o funcionamento de uma economia. Como Mises observou em sua discussão sobre o socialismo, a propriedade privada (livre de governo) dos fatores de produção é necessária para a possibilidade do cálculo econômico. Sem esse cálculo, escreveu Mises, a economia cairia num caos, algo que foi eloqüentemente confirmado em diversos regimes socialistas na maior parte do século 20.

A propriedade privada como instituição necessária à eficiência econômica separa os Austríacos das outras escolas de pensamento, incluindo a Escola de Chicago. As outras facções defendem que a eficiência econômica é simplesmente uma questão de igualar preços ao  custo marginal. De acordo com suas doutrinas, qualquer empresa que cobra um preço diferente do custo marginal cria uma "falha de mercado” que não pode ser sanada pelo mercado. Assim, o governo deve intervir para corrigir essa aberração.

Os Austríacos, por outro lado, acreditam que tal noção é pura loucura. A idéia de que alguém no governo - ou mesmo na iniciativa privada - possa saber o "custo marginal” de uma firma particular, em qualquer estágio de produção, é um exercício de auto-ilusão, pois exigiria uma onisciência que ninguém possui.

Este abismo entre os Austríacos e as outras escolas do pensamento econômico é destacado por uma série de outras diferenças. Os Austríacos vêem a concorrência de mercado como um processo, enquanto outros vêem a concorrência como vários estados estáticos que vão desde a concorrência perfeita ao monopólio. O ponto de vista Neomarshalliano de concorrência sustenta que o estado natural das relações econômicas é um inevitável movimento da concorrência ao monopólio. Em outras palavras, a menos que o governo intervenha, há uma tendência de mercados competitivos, ao longo do tempo, saírem de estados de pura competição para estados em que as empresas possuam puros privilégios de monopólio.

Os Austríacos, no entanto,  adotam uma abordagem diferente. Eles constatam freqüentemente que nos estágios iniciais de produção, relativamente poucas empresas produzem bens e serviços. Como estas empresas ganham lucros econômicos, no entanto, os empresários tentam aproveitar novas oportunidades de lucro.

Como a produção continua e o mercado potencial para o bem ou serviço particular cresce, as empresas tendem a se fundir. Isso não é necessariamente um sinal de diminuição da concorrência, afirmam os Austríacos. Em vez disso, eles observam que a única maneira de uma empresa expandir as suas operações - sem a ajuda do governo - é produzir algo que agrada a um grande número de clientes, o que Mises chamou de "soberania do consumidor".

Portanto, os Austríacos vêem o crescimento da Standard Oil Company de John D. Rockefeller como sendo o resultado da capacidade da empresa em oferecer aos clientes um bom produto a um preço baixo, e não o contrário. Como os Austríacos e outros defensores de Rockefeller notaram, o crescimento da Standard Oil Company coincidiu com melhores serviços e preços mais baixos para os consumidores.

As diferenças entre os dois campos teóricos são fundamentais e mutuamente excludentes. Por um lado, os Austríacos não estão limitados pelos modelos  neomarshallianos suavizados , contínuos, com curvas de custo em forma de U, e que pressupõem que as empresas conhecem o custo marginal e a receita marginal de cada unidade produzida. Estes modelos, afirmam os Austríacos, no melhor caso são grosseiros e no pior, enganosos. Ao mesmo tempo em que esses modelos podem funcionar como boas ferramentas pedagógicas em sala de aula (e nos tribunais), eles são utilizados pelos governos  no controle das relações empresariais.

Na verdade, o uso destes modelos consolidou as  diferenças entre Mises e Oskar Lange no Debate do Cálculo Socialista de 1930. Lange afirmava que o governo poderia usar os modelos Neomarshallianos para definir preços e produção, já que os custos eram objetivamente obtidos e as informações necessárias para a tomada de decisão eram automaticamente incorporadas nas curvas de custo.

Mises argumentava que o raciocínio de Lange era ridículo. Não só os fatores de mercado não poderiam operar sem a instituição real da propriedade privada, como também não  haveria uma maneira das agências de planejamento socialista dirigirem as relações econômicas de um país usando modelos simples e grosseiros de sala de aula. Em 1939, Lange ganhou o elogio de seus pares, que o declararam "vencedor" do debate. Em 1990, a posição de Mises foi sustentada por eventos e fatos reais.

Compreender os limites dos modelos neoclássicos modernos é essencial para o entendimento do debate atual sobre a eficácia das leis antitruste e de "defesa da concorrência". Se o potencial explicativo desses modelos é fraco, então, atrelá-los a leis que usurpam a propriedade privada não é só contraproducente, mas também revela o verdadeiro sentido e utilidade das poderosas garras do governo. O fato de economistas terem feito milhões de dólares atestando casos antitruste (e usando seus modelos grosseiros como suporte) também nos diz que alguns membros desta profissão estão fazendo mais do que promover a "eficiência econômica" altruisticamente.

Os economistas Austríacos por mais de um século têm dado explicações precisas para os fenômenos econômicos que temos observado. No caso da Microsoft, eles não caíram na armadilha de olhar para as circunstâncias particulares para ver se  Bill Gates "infringiu a lei" ou não. Em vez disso, os Austríacos insistem que a legislação antitruste por si só é fatalmente falha. É hora de desafiar os paradigmas modernos neoclássicos sobre as quais repousam as leis antitrustes. Nas palavras de Mr. Bumble em Oliver Twist, de Charles Dickens, "Se essa é a lei meu senhor, então a lei é burra".

William L. Anderson é scholar adjunto do Mises Institute e ensina economia na Frostburg State University.

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Tradução de Tullio Bertini

quinta-feira, 23 de junho de 2011

A igualdade

por Ludwig von Mises (extraído de "Liberalismo Segundo a Tradição Clássica")

Em nenhum ponto fica mais claro e mais fácil demonstrar a diferença entre o raciocínio do velho liberalismo e o do neoliberalismo do que no tratamento do problema da igualdade.  Os liberais do século XVIII, guiados pelas ideias da lei natural e do iluminismo, exigiam para todos a igualdade nos direitos políticos e civis, porque pressupunham serem iguais todos os homens.  Deus fez todos os homens iguais, dotando-os, fundamentalmente, das mesmas capacidades e talentos, soprando-lhes o sopro de seu Espírito.  Todas as diferenças existentes entre os homens são apenas artificiais, produto das instituições sociais e humanas, isto é, transitórias.  O que é imperecível no homem — seu espírito — sem dúvida é o mesmo no rico e no pobre, no nobre e no plebeu, no branco e no preto.

No entanto, nada mais infundada do que a afirmação da suposta igualdade de todos os membros da raça humana.  Os homens são totalmente desiguais.  Mesmo entre irmãos, há diferenças das mais marcantes, quer nos atributos físicos, quer nos mentais.  A natureza nunca se repete em sua criação; não produz nada às dúzias, nem são padronizados os seus produtos.  Cada homem que nasce de sua fábrica traz consigo a marca do indivíduo, único e irrepetível.  Os homens não são iguais e a exigência da igualdade por lei não pode, de modo algum, basear-se na alegação de que tratamento igual é devido a iguais.

Há duas razões distintas pelas quais todos os homens devem receber tratamento igual perante a lei.  Uma delas já mencionamos, quando analisamos as objeções à servidão involuntária.  Para que o trabalho humano obtenha a mais alta produtividade possível, o trabalhador deve ser livre, porque só o trabalhador livre, que goza, na forma de salários, os frutos do seu próprio trabalho, se exercitará ao máximo.  O segundo ponto, em favor da igualdade de todos os homens perante a lei, trata da manutenção da paz social.  Já dissemos que qualquer perturbação do desenvolvimento pacífico da divisão do trabalho deve ser evitado; porém, é quase impossível preservar uma paz duradoura numa sociedade em que são diferentes os direitos e deveres das respectivas classes.  Quem negar direitos a uma parte da população deve estar sempre preparado para um ataque coeso, vindo dos destituídos daquele privilégio.  Os privilégios de classe devem desaparecer, para que cessem os conflitos por eles causados.

É, por conseguinte, bastante injustificável arguir de imperfeição a maneira pela qual o liberalismo defende o postulado da igualdade, baseando-se em que o liberalismo tenha criado apenas a igualdade perante a lei, e não a igualdade real.  Todo poder humano seria incapaz de tornar os homens realmente iguais.  Os homens são e permanecerão sempre desiguais.  São considerações sensatas e úteis, tais como as que aqui apresentamos, que constituem o argumento em favor da igualdade de todos os homens perante a lei.  O liberalismo nunca almejou algo além disso, nem exigiu mais que isso.  Está além da capacidade humana tornar o negro num branco.  Mas aos negros podem ser garantidos os mesmos direitos do branco, e daí pode ser-lhes oferecida a possibilidade do mesmo ganho, se produzirem a mesma quantidade.

Mas, dizem os socialistas, não basta tornar os homens iguais perante a lei.  Para torná-los realmente iguais, é necessário provê-los da mesma renda.  Não basta abolir os privilégios de nascença e de posição.  É preciso acabar com o maior e o mais importante de todos os privilégios, a saber, o que é propiciado pela propriedade privada.  Só então o programa liberal estará completamente realizado e um liberalismo coerente desembocará, portanto, em última análise, no socialismo, na abolição da propriedade privada dos meios de produção.

O privilégio é um arranjo institucional que favorece alguns indivíduos ou a um certo grupo, à custa dos demais.  O privilégio existe, embora prejudique a alguns, talvez à maioria, e não beneficia a ninguém, a não ser àqueles, para os quais foi criado.  Na ordem feudal da Idade Média, certos senhores possuíam o direito hereditário da magistratura judicial.  Eram juízes por terem herdado a posição, mesmo que não possuíssem capacidade nem qualidades de caráter apropriadas a um juiz.  A seus olhos, tal ofício nada mais representava do que uma lucrativa fonte de renda.  No caso, a magistratura era privilégio de uma classe de berço nobre.

No entanto, se os juízes, nos Estados modernos, são sempre escolhidos num círculo de pessoas que possuem conhecimentos e experiência em leis, isto não constitui um privilégio dos advogados.  A preferência é dada aos advogados, não para o seu próprio bem, mas em favor do bem-estar público, porque as pessoas, em geral, manifestam a opinião de que o conhecimento de jurisprudência é pré-requisito indispensável para a magistratura.  A controvérsia sobre o fato de um certo arranjo institucional dever ou não ser considerado um privilégio de certo grupo, classe ou pessoa não deve ser decidida pelas vantagens ou não que traz a esse grupo, classe ou pessoa, mas pelos benefícios que traz ao público em geral.  O fato de que, em um navio que esteja singrando os mares, um homem seja o capitão e os demais constituam a tripulação, e, portanto, estejam sob seu comando, sem dúvida, é uma vantagem para o capitão.  Não obstante, não constitui privilégio do capitão, se ele possui a capacidade de dirigir o navio entre recifes numa tempestade, e, por isso, de estar a serviço não apenas de si mesmo, mas de toda a tripulação.

Para se determinar se um arranjo institucional deva ser considerado como privilégio especial de um indivíduo ou de uma classe, a pergunta a se fazer não é se o privilégio beneficia este ou aquele indivíduo, ou esta ou aquela classe, mas se é benéfico ao público de um modo geral.  Se chegarmos à conclusão de que apenas a propriedade privada dos meios de produção torna possível a prosperidade da sociedade humana, é claro que isso equivale a dizer que a propriedade privada não constitui privilégio de seu proprietário, mas uma instituição social para o bem de todos, muito embora possa, ao mesmo tempo, ser especialmente agradável e vantajosa para alguns.

Não é em nome dos proprietários que o liberalismo propõe a preservação da instituição da propriedade privada.  Não é porque a abolição desta instituição violaria o direito de propriedade que os liberais desejam preservá-la.  Se achassem que sua abolição fosse de interesse geral, os liberais lutariam por sua abolição, não importa o quão prejudicial isso pudesse ser aos interesses dos proprietários.  Entretanto, a preservação desta instituição é do interesse de todos os estratos da sociedade.  Mesmo os pobres, que nada possuem de si próprios, vivem incomparavelmente melhor, em nossa sociedade, do que viveriam em uma sociedade que não fosse capaz de produzir nem mesmo uma parte do que se produz hoje.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Estrela-do-mar com um braço no cerrado

Helio Beltrão, presidente do IMB, teve um excelente insight quando comparou o movimento austríaco a uma estrela-do-mar. Temos um centro em comum, a teoria e nossos valores, mas a ação é descentralizada e independente.

Partindo da motivação e da responsabilidade que a citação abaixo nos transmite, esperamos que nosso trabalho consolide um "braço" do pensamento austríaco nessa cidade onde inexiste a defesa da liberdade e da propriedade privada.
"Estamos sobre ombros de gigantes, como os escolásticos espanhóis e portugueses, Bastiat, Menger, Mises, Hayek, Rothbard e todas as estrelas da atualidade.  Nossas ideias possuem um maior e melhor poder explanatório quanto às consequências das intervenções governamentais.  Somos superiores a todas as outras teorias concorrentes nesse quesito.  Nossas ideias foram testadas e consolidadas ao longo de mais de 100 anos; algumas, ao longo de séculos.  Portanto, não é a escassez de ideias que obstrui o nosso avanço." Helio Beltrão [palestra completa aqui]

domingo, 19 de junho de 2011

A Escola Austríaca de Economia, por Peter Boettke

O texto consiste num artigo de enciclopédia econômica.

Tradução de Rafael Hotz


A Escola Austríaca de Economia foi fundada em 1871 com a publicação do livro de Carl Menger, Princípios de Economia Política. Menger, conjuntamente com William Stanley Jevons e Leon Walras, desenvolveu a revolução marginalista na análise econômica. Menger dedicou Princípios de Economia Política a seu colega alemão William Roscher, figura proeminente da Escola Historicista Alemã, que dominava o pensamento econômico nos países de língua alemã. Em seu livro, Menger argumentou que a análise econômica é universalmente aplicável e que a unidade apropriada de análise é o homem e suas escolhas. Essas escolhas, escreveu, são determinadas por preferências individuais subjetivas e pela margem na qual essas decisões são tomadas (ver Marginalismo). A lógica da escolha, ele acreditava, era a ferramenta essencial para o desenvolvimento de uma teoria econômica universalmente válida.

A escola histórica, por outro lado, dizia que a ciência econômica é incapaz de gerar princípios universais e que a pesquisa científica deveria ao invés ser focada em exame histórico detalhado. A escola histórica achava que os economistas ingleses clássicos estavam errados em acreditarem em leis econômicas que transcendem o tempo e fronteiras nacionais. Os Princípios de Economia Política de Menger restauraram a visão clássica da economia política de leis universais e o fizeram se utilizando de análise marginal. Os estudantes de Roscher, especialmente Gustav Schmoller, fizeram grandes ressalvas à defesa de Menger da “teoria” e deram ao trabalho de Menger e seus seguidores, Eugen Böhm-Bawerk e Friedrich Wieser, o nome depreciativo de “Escola Austríaca”, graças a suas posições de docentes na Universidade de Viena. O termo pegou.

Desde os anos 30, nenhum economista da Universidade de Viena ou qualquer outra universidade austríaca se tornou figura proeminente da então chamada Escola Austríaca de economia. Nos anos 30 e 40, a Escola Austríaca se mudou para a Inglaterra e EUA, e os acadêmicos associados a essa abordagem da ciência econômica estavam primariamente localizados na London School of Economics (31-50), New York University (44-?), Auburn University (83-?) e George Mason University (81-?). Muitas das idéias dos principais economistas austríacos de meados do século XX, tais como Ludwig von Mises e F.A. Hayek, tem raízes nas idéias de economistas clássicos como Adam Smith e David Hume, ou figuras do início do século XX como Knut Wicksell, bem como Menger, Böhm-Bawerk e Friedrich von Wieser. Essa mistura diversa de tradições intelectuais da ciência econômica é ainda mais óbvia em economistas austríacos contemporâneos, que foram influenciados por figuras modernas na economia. Estas incluem Armen Alchian, James Buchanan, Ronald Coase, Harold Demsetz, Axel Leijonhufvud, Douglass North, Mancur Olson, Vernon Smith, Gordon Tullock, Leland Yeager e Oliver Williamson, bem como Israel Kirzner e Murray Rothbard. Enquanto se poderia argumentar que uma Escola Austríaca única opera em meio a profissão econômica hoje em dia, também poderia se argumentar sensivelmente que o rótulo “Austríaco” não possui mais um significado substantivo. Nesse artigo eu me concentro nas proposições principais sobre economia que os chamados Austríacos acreditam.

A Ciência Econômica

Proposição 1: Apenas indivíduos escolhem.

O homem, com seus propósitos e planos, é o ponto de partida de toda análise econômica. Apenas indivíduos escolhem; entidades coletivas não escolhem. A tarefa primária da análise econômica é tornar os fenômenos econômicos inteligíveis ao baseá-los em propósitos individuais e planos; a tarefa secundária da análise econômica é buscar as conseqüências não intencionais das escolhas individuais.

Proposição 2: O estudo da ordem de mercado é fundamentalmente sobre o comportamento de troca e as instituições em meio as quais essas trocas ocorrem.

O sistema de preços e a economia de mercado são mais bem compreendidas como uma “cataláxia”, e dessa forma a ciência que estuda a ordem de mercado cai sobre o domínio da “cataláxia”. Esses termos são derivados dos significados originais gregos da palavra “katallaxy” – trocar e trazer um estranho para seu lado através da troca. A cataláxia foca atenção analítica nas relações de troca que emergem no mercado, na barganha que caracteriza o processo de troca, e nas instituições nas quais essas trocas ocorrem.

Proposição 3: Os “fatos” das ciências sociais são aquilo que as pessoas acreditam e pensam.

Diferente das ciências físicas, as ciências humanas começam com propósitos e planos de indivíduos. Se nas ciências físicas o expurgo de propósitos e planos levou a avanços ao superar o problema do antropomorfismo, nas ciências humanas, a eliminação de propósitos e planos resulta em expurgar a ciência da ação humana de seu assunto principal. Nas ciências humanas, os “fatos” do mundo são aquilo que os agentes acreditam e pensam.

O significado que os indivíduos atribuem às coisas, práticas, locais e pessoas determina como eles se orientarão em tomar decisões. A meta das ciências da ação humana é inteligibilidade, e não previsão. As ciências humanas podem atingir seu objetivo porque nós somos aquilo que estamos estudando, ou porque possuímos conhecimento de dentro, ao passo que as ciências naturais não podem perseguir uma meta de inteligibilidade porque elas dependem de conhecimento externo. Nós podemos entender propósitos e planos de outros agentes humanos porque nós mesmos somos atores humanos.

A experiência clássica de pensamento usada para transmitir essa diferença essencial entre as ciências da ação humana e as ciências físicas era um marciano observando os “dados” na Grand Central Station em Nova Iorque. Nosso marciano poderia observar que quando a mãozinha do relógio aponta para o oito, há um tumulto de movimentação conforme os corpos deixam aquelas caixas, e que quando a mãozinha chega ao cinco, há um tumulto de movimentação conforme os corpos reentram nas caixas e vão embora. O marciano pode até desenvolver uma previsão sobre a mãozinha e o movimento dos corpos e das caixas. Mas a menos que o marciano venha a compreender os propósitos e planos (a comutação de ida e volta do trabalho), seu entendimento “científico” dos dados da Grand Central Station será limitado. As ciências da ação humana são diferentes das ciências naturais, e empobrecemos as ciências humanas quando tentamos encaixa-las no molde filosófico/científico das ciências naturais.

Microeconomia

Proposição 4: Utilidade e custos são subjetivos.

Todo fenômeno econômico é filtrado pela mente humana. Desde 1870, os economistas concordaram que valor é subjetivo, mas, ao seguirem Alfred Marshall, muitos argumentaram que o lado dos custos da equação é determinado por condições objetivas. Marshall insistia que assim como ambas as lâminas de uma tesoura cortam um pedaço de papel, também o valor subjetivo e custos objetivos determinavam preços (ver microeconomia). Mas Marshall falhou em apreciar que custos também são subjetivos porque eles mesmos são determinados pelos valores dos usos alternativos de recursos escassos. Ambas as lâminas da tesoura de fato cortam o papel, mas a lâmina da oferta é determinada pelas valorações subjetivas dos indivíduos.

Ao decidir sobre cursos de ação, deve-se escolher; ou seja, deve-se seguir um caminho e não outros. O foco nas alternativas de escolhas leva a um dos conceitos definidores da maneira econômica de pensar: custos de oportunidade. O custo de qualquer ação é o valor da alternativa abdicada mais valorizada ao agir daquela forma. Uma vez que a ação abdicada é por definição nunca realizada, quando se decide, se compara os benefícios esperados de uma atividade com os benefícios esperados de atividades alternativas.

Proposição 5: O sistema de preços economiza a informação que as pessoas necessitam saber para proceder com suas decisões.

Preços sumarizam os termos de troca no mercado. O sistema de preços sinaliza aos participantes do mercado a informação relevante, ajudando-os a realizar ganhos mútuos a partir das trocas. No famoso exemplo de Hayek, quando as pessoas percebem que o preço do estanho aumentou, elas não precisam saber se a causa foi um aumento na demanda por estanho ou um decréscimo na oferta. De qualquer forma, o aumento no preço do estanho as leva a economizar em seu uso. Os preços de mercado mudam rapidamente quando as condições sustentadoras mudam, o que leva as pessoas a se ajustarem rapidamente.

Proposição 6: A propriedade privada dos meios de produção é uma condição necessária para o cálculo econômico racional.

Economistas e cientistas sociais há muito já reconheceram que a propriedade privada provém incentivos poderosos para a alocação eficiente de recursos escassos. Mas aqueles simpáticos ao socialismo acreditavam que este poderia transcender esses problemas de incentivos ao mudar a natureza humana. Ludwig von Mises demonstrou que mesmo se supusermos que uma mudança na natureza humana ocorresse, o socialismo ainda sim falharia graças a incapacidade dos planejadores econômicos de calcular o uso alternativo dos recursos. Sem propriedade privada nos meios de produção, raciocinou Mises, não haveria mercado para os meios de produção, e logo então não haveria preços monetários refletindo a escassez relativa dos meios de produção. E sem preços monetários refletindo a escassez relativa dos meios de produção, os planejadores econômicos seriam incapazes de calcular racionalmente o uso alternativo dos meios de produção.

Proposição 7: O mercado competitivo é um processo de descoberta empresarial.

Muitos economistas enxergam a competição como um estado de coisas. Mas o termo “competição” implica uma atividade. Se competição fosse um estado de coisas, o empreendedor não teria função. Mas como a competição é uma atividade, o empreendedor tem um grande papel como agente da mudança que empurra e puxa o mercado para novas direções.

O empreendedor é alerta para oportunidades não reconhecidas para ganho mútuo. Ao reconhecer oportunidades, o empreendedor obtém um lucro. O aprendizado mútuo da descoberta de ganhos através da troca impulsiona o sistema de mercado em direção a uma alocação mais eficiente de recursos. A descoberta empresarial garante que um livre mercado caminha em direção ao uso mais eficiente dos recursos. Além disso, a atração do lucro continuamente instiga os empreendedores a procurarem inovações que aumentem a capacidade empresarial. Para o empreendedor que reconhece a oportunidade, as imperfeições de hoje representam os lucros de amanhã [1]. O sistema de preços e a economia de mercado são artifícios de aprendizado que guiam os indivíduos para descobrir ganhos mútuos e usar recursos escassos eficientemente.

Macroeconomia

Proposição 8: Não neutralidade da moeda.

O dinheiro é definido como o meio de troca mais comumente aceito. Se a política governamental distorce a unidade monetária, a troca também é distorcida. A meta da política monetária deveria ser minimizar essas distorções. Qualquer aumento na oferta monetária não contrabalanceada por um aumento na demanda por moeda irá levar a um aumento de preços. Mas os preços não se ajustam instantaneamente pela economia. Alguns ajustes ocorrem mais rápido que outros, o que significa que os preços relativos mudam. Cada uma dessas mudanças exerce sua influencia no padrão de trocas e produção. O dinheiro, assim, por sua própria natureza, não pode ser neutro.

A importância dessa proposição se torna evidente ao discutir os custos da inflação. A teoria quantitativa da moeda postulava, corretamente, que imprimir dinheiro não aumenta a riqueza. Assim, se o governo duplica a oferta monetária, os ganhos aparentes dos os donos do dinheiro em capacidade de comprar bens são prevenidos pela duplicação de preços. Mas enquanto a teoria quantitativa da moeda representava um avanço importante no pensamento econômico, uma interpretação mecânica da teoria subestimava os custos da política inflacionária. Se os preços simplesmente dobrassem quando o governo duplicasse a oferta monetária, então os agentes econômicos antecipariam esse ajuste de preços ao seguirem de perto dados de oferta monetária e ajustariam seu comportamento correspondentemente. O custo da inflação seria assim mínimo.

Mas a inflação é socialmente destrutiva em diversos níveis. Primeiro, mesmo inflação antecipada rompe a confiança básica entre o governo e seus cidadãos porque o governo está se utilizando de inflação para confiscar a riqueza das pessoas. Segundo, inflação não antecipada é redistributiva, pois os devedores ganham à custa dos credores. Terceiro, uma vez que as pessoas não conseguem antecipar perfeitamente a inflação e porque o dinheiro é somado em algum lugar do sistema – digamos, através da compra governamental de títulos – alguns preços (preços dos títulos, por exemplo) se ajustam antes de outros preços, o que significa que a inflação distorce o padrão de troca e produção.

Já que o dinheiro é a conexão para quase todas as transações numa economia moderna, distorções monetárias afetam essas transações. A meta da política monetária, logo, deveria ser minimizar essas distorções monetárias, precisamente porque a moeda é não neutra [2].

Proposição 9: A estrutura de capital consiste em bens heterogêneos que possuem usos não específicos que precisam ser alinhados.

Agora mesmo, pessoas em Detroit, Stuttgart e Tóquio estão fabricando carros que não serão comprados antes de uma década. Como elas fazem para alocar recursos e cumprir seu objetivo? A produção é sempre para uma demanda futura incerta, e o processo de produção requer diferentes estágios de investimento desde os mais remotos (extração de minério de ferro) até os mais imediatos (a venda final do carro). Os valores de todos os bens de produção em cada estágio de produção derivam seu valor do valor que os consumidores conferem ao produto sendo produzido. O plano de produção alinha vários bens numa estrutura de capital que produz bens finais e, idealmente, da maneira mais eficiente. Se bens de capital fossem homogêneos, eles poderiam ser usados para produzir todos os bens de consumo finais que os consumidores desejam. Se erros fossem cometidos, os recursos seriam realocados rapidamente e a custo mínimo, para produzir o produto final mais desejado. Mas bens de capital são heterogêneos e multiespecíficos; uma fábrica de carros pode fabricar carros, mas não pode fabricar chips de computador. O alinhamento intricado do capital para produzir diversos bens de consumo é governado pelos sinais de preços e pelo cuidadoso cálculo econômico dos investidores. Se o sistema de preços é distorcido, os investidores cometerão erros ao alinhar seus bens de capital. Uma vez que o erro é revelado, os agentes econômicos irão refazer seus investimentos, mas no ínterim recursos serão perdidos [3].

Proposição 10: Instituições Sociais são normalmente o resultado da ação humana, mas não do propósito humano.

A maioria das instituições e práticas mais importantes não é o resultado do propósito direto, mas é o co-produto de ações tomadas para atingir outros objetivos. Um estudante no meio-oeste em janeiro tentando chegar à classe rapidamente enquanto evita o frio poderá cortar caminho pelo jardim ao invés de caminhar pela calçada. Cortar caminho pelo jardim na neve deixa pegadas; conforme outros estudantes as seguem, eles poderão aumentar a trilha. Apesar de sua meta ser meramente chegar à sala mais rápido e evitar o tempo frio, no processo eles criam um caminho na neve que acaba por ajudar os estudantes que chegam depois em atingir sua meta mais facilmente. A história da “trilha na neve” é um exemplo simples de um “produto da ação humana, mas não do propósito humano” (Hayek, 1948, p.7).

A economia de mercado e seu sistema de preços são exemplos de um processo similar. As pessoas não tencionam criar o conjunto complexo de trocas e sinais de preços que constituem uma economia de mercado. Sua intenção é apenas melhorar sua vida, mas seu comportamento resulta no sistema de mercado. O dinheiro, a lei, a linguagem, a ciência e outros são todos fenômenos sociais que podem ter suas origens demonstradas não pelo propósito humano, mas ao invés, por pessoas tentando atingir sua própria melhoria, e nesse processo produzindo um resultado que beneficie o público.

As implicações dessas dez proposições são um tanto quanto radicais. Se elas se mantiverem verdadeiras, a teoria econômica seria baseada em lógica verbal e trabalho empírico focado em narrativas históricas. No que toca políticas públicas, fortes dúvidas seriam levantadas sobre a capacidade dos oficiais governamentais de intervirem de maneira ótima sobre o sistema econômico, deixado sozinho para gerenciar racionalmente a economia.

Talvez os economistas devessem adotar o credo dos médicos: “Primeiro não cause danos”. A economia de mercado se desenvolve a partir da inclinação natural das pessoas em melhorar sua situação e, ao fazê-lo, descobrirem as trocas mutuamente benéficas que cumprirão esse papel. Adam Smith sistematizou primeiramente essa mensagem na Riqueza das Nações. No século XX, economistas da Escola Austríaca de economia foram os defensores mais inflexíveis dessa mensagem, não graças a seu cometimento ideológico anterior, mas graças à lógica de seus argumentos.

Sobre o Autor: Peter J. Boettke é professor de economia na George Mason University, aonde ele também é vice-diretor do James M. Buchanan Center for Political Economy e um veterano no Mercatus Center. Ele é o editor do Rewiew of Austrian Economics.

Notas do Autor

[1] Empreendedorismo pode ser caracterizado por três momentos distintos: capacidade de fazer descobertas ao acaso, busca (deliberação consciente) e aproveitar a oportunidade para lucros.

[2] A busca por soluções para esse objetivo elusivo gerou alguns dos trabalhos mais inovadores de economistas Austríacos e levou ao desenvolvimento nos anos 70 e 80 à literatura de free-banking de F.A. Hayek, Lawrence White, George Selgin, Kevin Dowd, Kurt Schuler, e Steven Horwitz.

[3] As proposições 8 e 9 formam o núcleo da teoria austríaca dos ciclos de negócio, que explicam como a expansão do crédito por parte do governo gera um mal investimento na estrutura de capital durante o período do boom e que deve ser corrigido na fase de recessão. Na economia contemporânea, Roger Garrison é o expositor líder dessa teoria.

[4] Nem toda ordem espontânea é benféfica, e, assim, essa proposição não deve ser lida como um exemplo da falácia Panglossiana. Se indivíduos perseguindo seu próprio interesse geram benefícios públicos depende das condições instituicionais nas quais eles perseguem seus interesses. Tanto a mão invisível da eficiência do mercado quanto à tragédia dos comuns são resultados de indivíduos tentando buscar seus interesses individuais; mas em um arranjo social isso gera benefícios sociais, ao passo que em outro ele gera perdas. A nova economia institucional tem focado atenção novamente em como resultados sociais sensitivos estão relacionados com o quadro institucional em que os indivíduos interagem. É importante, entretanto, perceber que todos os economistas políticos clássicos e os primeiros economistas neoclássicos reconheciam o argumento básico dos novos economistas institucionais, e que era apenas a fascinação da metade do século XX em provas formais do equilíbrio competitivo geral, de um lado, e a preocupação Keynesiana com variáveis agregadas, de outro, que tendiam a escurecer as precondições institucionais requeridas para a cooperação social.